Mulheres Negras Lésbicas e Bissexuais de Lisboa: "Apesar da nossa total invisibilidade em todos os espaços, nós existimos"
Já passaram alguns meses desde a Marcha do Orgulho LGBT de Lisboa. Quem esteve presente não deve ter esquecido ainda os momentos do discurso poderoso e arrebatador das mulheres negras lésbicas e bissexuais de Lisboa. E quem não foi à marcha e não sabe do que estamos a falar? E quem quer saber mais sobre estas guerreiras que com determinação e um sorriso enorme levam o activismo na voz e na alma? Respondemos a estas questões com uma entrevista conjunta às responsáveis pelo Colectivo Zanele Muholi:
São elas Daniela Tavares, Shanne Kamilla, Marcia Silva, Cintia Vieira, Aurora Cândido, Nelsa Moniki Augusto, Alexsandra Rocha, Iracema Teixeira Mambowense e Geanine Escobar.
dezanove: Tiveram a noção que receberam uma das maiores ovações na 17.ª Marcha do Orgulho de Lisboa? Como se sentiram?
Colectivo Zanele Muholi: Já estávamos a combinar há alguns dias de nos encontrarmos antes do dia da 17ª Marcha do Orgulho LGBT de Lisboa para conversarmos sobre a nossa participação e elaborarmos cartazes com a temática da luta negra e lésbica. No entanto, isso não foi possível, os horários de todas estavam complicados. Por isso, só mesmo no dia 18 de Junho, poucas horas antes da Marcha, é que nos encontramos perto do Rossio. Procuramos insistentemente uma papelaria para comprarmos cartolinas para fazer cartazes, mas infelizmente não encontramos nada aberto naquele Sábado. Mas, de repente uma das integrantes do colectivo viu um monte de caixas de papelão do lado de fora de um estabelecimento e, em poucos segundos, as caixas que iriam para o lixo viraram a melhor forma de expressarmos a nossa luta pela visibilidade das lésbicas negras. Já estava quase na hora da Marcha, por isso pensamos rapidamente nas frases que iríamos escrever, cada uma escolheu a sua: “Menos LGBTfobia, mais Amor!”; “Lesbofobia MATA! Não a violência contra lésbicas! Resistimos!”; “Toda a forma de amor é válida, menos violência, mais respeito e amor!”; “Mulheres Negras e Lésbicas contra o racismo e a lesbofobia”.
E assim fomos ao encontro da multidão, orgulhosas com os nossos cartazes feitos de forma totalmente improvisada, mas que passavam a mensagem que queríamos. Chegando lá, percebemos que éramos, o único grupo de mulheres negras, assumidamente lésbicas e bissexuais, que demonstrava colectivamente uma união contra a invisibilidade da negritude e da lesbianidade. Para nós, que já a enfrentamos quotidianamente esse apagamento, não era algo de se espantar, embora não esperássemos que num espaço de visibilidade e luta LGBT, tivessem uma maioria esmagadora de pessoas brancas. Chamamos muita atenção, muitas pessoas vinham tirar fotos e nos filmar, entretanto a nossa intenção não era essa. A finalidade da nossa participação era a de integrar a manifestação pública e mostrar que existimos e resistimos a todas as discriminações que nos impõem e oprimem. Resistimos à heterossexualidade obrigatória, ao eurocentrismo, ao racismo, ao preconceito de classe, aos estereótipos sobre fufas/lésbicas e todo o tipo de intolerância que relacione racismo, sexismo e lesbofobia. Não queríamos ter causado tanto espanto ou surpresa, mas reconhecemos que, mais uma vez, fomos à excepção à regra, que era branca e de classe média, embora LGBT.
E de repente viram-se em cima do palco dos discursos…
Sobre o momento que subimos no palco da 17ª Marcha do Orgulho LGBT de Lisboa para anunciarmos o nome da nossa organização e fazer uma breve fala, todas concordamos que foi o momento mais emocionante que vivemos publicamente até então. Logo depois que falamos: “Colectivo Zanele Muholi de Lésbicas e Bissexuais Negras, presente!”, pessoas que estavam sentadas levantaram-se, pessoas que estavam a conversar com o/a amigo/a do lado pararam para prestar atenção.
Falámos, gritamos em tom altivo e de reinvindicação. Quando vimos a multidão eufórica, gritando e batendo palmas sem parar, demo-nos por conta de que não estávamos ali por um mero acaso. Não imaginávamos que as pessoas poderiam ter as reacções que vimos e ouvimos. Foi um momento emocionante e decisivo para nós, enquanto colectivo de lésbicas negras em Lisboa. Temos consciência da nossa responsabilidade em levar essa iniciativa a frente. O nosso desejo é que cada vez mais mulheres negras lésbicas e bissexuais percebam que não estão sozinhas, que nós somos muitas, somos diversas, só estamos espalhadas.
Revê aqui o discurso do Colectivo Zanele Muholi durante a 17ª Marcha do Orgulho LGBT de Lisboa:
Como é que surgiu o Colectivo de Mulheres Negras Lésbicas e Bissexuais de Lisboa - Zanele Muholi?
O Colectivo Zanele Muholi de Lésbicas e Bissexuais Negras iniciou sua construção no dia 5 de Abril de 2016. Neste dia, reuniram-se as amigas Shanne, Geanine a Daniela para trocar ideias. Uma das conversas foi sobre a importância de falar sobre lesbianidade negra na Europa. Falou-se sobre os espaços que não existem pra nós e/ou que não são convidativos. Seja em âmbito de lazer, festas, nos espaços académicos ou de activismo. Nesse sentido, pensamos juntas sobre o que poderíamos fazer em relação a essa invisibilidade lésbica e negra, principalmente em Portugal, onde residimos. Criou-se o grupo secreto no Facebook 'Lésbicas Negras Africanas - Europa'. A partir desse grupo, foram marcadas algumas reuniões presenciais e posteriormente teve-se a ideia de demarcar um movimento de lésbicas e bissexuais negras na cidade de Lisboa - Portugal. O nome oficial do colectivo foi divulgado amplamente no dia 18 de Junho de 2016, na maior manifestação de luta contra LGBTFobia e pela visibilidade de pessoas lésbicas, gays, bissexuais, trans e intersexo de Portugal, na 17ª Marcha do Orgulho LGBT – Lisboa.
A acumulação de discriminações fez-vos criar um colectivo com o nome de Zanele Muholi. Podem falar-nos um pouco dela, de quem é e da forma como o trabalho dela vos inspirou?
A escolha do nome da activista visual Zanele Muholi, deu-se pela sua representatividade enquanto lésbica negra e activista pelas causas lésbicas e bissexuais na África do Sul. O intuito é também fazer uma homenagem a Zanele Muholi, que de forma sensível executa um trabalho extremamente encantador e necessário ligado à visibilidade e identidades das lésbicas negras africanas. Suas fotografias são como mecanismos de elevação da auto-estima para outras lésbicas negras que se identificam e sentem-se representadas com seus variados registos.
Zanele Muholi nasceu em Umlazi, estado de Durban, em 1972, e vive na Cidade do Cabo, África do Sul. Completou o curso avançado de Fotografia no Market Photo Workshop em Newtown e apresentou a sua primeira exposição individual na Art Gallery de Joanesburgo, em 2004. Zanele Muholi é uma activista visual, como ela mesma classifica seu trabalho. Através da sua abordagem artística com carácter político ligado as imagens, consiste em dar visibilidade à comunidade negra de lésbicas, gays, bissexuais, transgéneros. Em 2009, Zanele foi premiada com o Master of Fine Arts licenciatura em Documentário de média da Universidade Ryerson em Toronto. Sua tese mapeou a história visual de identidades de mulheres negras lésbicas e a política na pós-Apartheid na África do Sul. A 28 de Outubro de 2013, ela foi nomeada Professora Honorária na Universidade das Artes / Hochschule für Künste - Bremen, na Alemanha.
Que relação têm com outras associações de direitos das mulheres, das pessoas negras e das pessoas LGBT? Que contributo concreto pode o vosso colectivo dar para inverter e melhorar essa situação em Portugal?
Somos uma organização recente, não temos ligação com nenhum outro colectivo ou associação. Logo após a Marcha, recebemos muitas mensagens de incentivo de activistas e demais integrantes de associações LGBT que tiverem interesse em conhecer-nos melhor, além de demonstrarem o desejo de executarem actividades em conjunto. Esse retorno nos deixou contentes e inspiradas para darmos continuidade as nossas acções. Acreditamos que o facto de existirmos enquanto uma organização autónoma, não ligada a entidades governamentais ou a partidos políticos já seja uma prova de resistência. Já nascemos persistentes e com vontade de questionar tudo o que o sistema hegemónico e eurocêntrico afirma que na prática que não podemos ser ou fazer. Queremos mostrar para os portugueses e outros europeus que existe uma forte presença das lésbicas negras na cidade de Lisboa, entre outras cidades próximas. Queremos dizer à toda a comunidade branca e a comunidade negra que apesar da nossa total invisibilidade em todos os espaços, nós existimos. Nós estamos nas praças com nossas amigas, levamos os nossos filhos na escola, estamos no banco pagando contas, no comércio e nos cafés trabalhando, nas festas do Bairro Alto, estamos na universidade estudando, estamos na Amadora, em Queluz, Massamá, Monte Abraão, Cacém, Sintra... Estamos em todos os lugares, queiram ou não. Acreditamos que o nosso papel é actuar como um movimento impulsionador para a criação de outros colectivos e grupos de lésbicas e bissexuais negras em Portugal, no Brasil, ou em países africanos.
Conseguem sintetizar em que consiste o vosso trabalho?
O colectivo Zanele Muholi de Lésbicas e Bissexuais Negras tem como objectivos:
- Combater a todas as formas de discriminação, sexismo, racismo, lesbofobia e bifobia;
- Lutar pela visibilidade das lésbicas e bissexuais negras, seja através de imagens com cunho político, através relatos, denúncias, vídeos, poesias.
- Compartilhar e trocar informações sobre lesbianidade negra;
- Auxiliar no desenvolvimento das políticas públicas e culturais que atinjam, principalmente, as lésbicas negras
- Estudar e pesquisa sobre lesbianidade negra para que juntas aprendermos mais sobre a nossa própria história de luta e resistência.
Por último, o que podem fazer as pessoas que vos queiram apoiar? Onde e como vos podem encontrar?
As pessoas que queiram nos apoiar e ou colaborar com acções concretas, como organização de encontros, roda de conversa, por exemplo, podem entrar em contacto connosco através da nossa página https://www.facebook.com/coletivozanelemuholi/?fref=ts ou pelo nosso e-mail coletivozanelemuholi@gmail.com.
Entrevista de Paulo Monteiro, Luís Veríssimo
Crédito das fotos: Pedro Lima, Anna Escobar e Rodrigo Grilo
Crédito do vídeo: Academia Cidadã