Nadar no escuro, a história Ludwik e Janusz é afinal comum a muitos de nós
Nadar no escuro é o romance de estreia de Tomasz Jędrowski, escritor nascido na República Federal da Alemanha nos últimos anos da Guerra Fria, o período em que decorre a narrativa.
Como parte da política educativa na Polónia soviética, país de origem da família do autor, todos os jovens devem frequentar um campo de trabalho agrícola assim que terminam o seu percurso escolar. Nessas semanas de verão, Ludwik passa as longas horas do dia na apanha da beterraba, acompanhado por dezenas de outros rapazes e raparigas vindos de todo o país. Entre eles, Janusz, por quem começa a desenvolver o mesmo desejo proibido que vem descrito num livro sem capa que Ludwik leva para o campo. Numa tarde depois do trabalho, o Quarto de Giovanni é oferecido a Janusz e revela-se o segredo que, afinal, ambos partilham e que marcará o início da sua aventura romântica.
A história Ludwik e Janusz é inevitavelmente cruzada pela geopolítica da cortina de ferro, pelo confronto entre Ocidente e União Soviética, capitalismo e comunismo. O contexto familiar do protagonista localiza o drama humano daquela zona da Europa, onde durante séculos populações inteiras estiveram sujeitas aos caprichos de várias potências externas, que as removiam e deslocavam como peças num tabuleiro. Ludwik sabe que esse tempo não acabou e que os dirigentes soviéticos em Varsóvia e Moscovo ainda controlam grande parte da sua vida.
Muitas vezes descrito como a versão polaca do clássico gay de James Baldwin, Nadar no escuro é antes uma história sobre a escolha entre conformação e resistência num regime autoritário que condena ferozmente os comportamentos sexuais desviantes. Os protagonistas são confrontados com dois caminhos inconciliáveis. A abdicação da liberdade pessoal, pela negação da identidade sexual e, claro, pela ocultação do amor proibido, é paga com as recompensas que o Estado-todo-o-poderoso pode oferecer: carreira, status, fortuna. A opção alternativa é a da clandestinidade – não apenas sexual, mas política. O Giovanni sem capa surge como um símbolo subversivo de liberdade sexual que ofende a ortodoxia moral do regime. Os vícios sexuais, próprios das nações burguesas, atentam contra a construção da sociedade ideal e por isso Ludwik, que não aceita resignar-se e calar a sua sexualidade, é considerado um inimigo do Estado.
Outro aspecto interessante em Nadar no escuro é a sua actualidade, quando temos uma guerra na Europa em que uma das partes se apresenta como herdeira do legado imperialista da URSS. Note-se que a Leste os ataques à comunidade queer não são exclusivos de nenhum regime. Já neste século os ataques mais hostis têm vindo de governos e movimentos religiosos ultra-conservadores, as forças que mais vocalmente condenam o comunismo. Basta ver a posição da igreja ortodoxa russa que justifica a invasão da Ucrânia com a propagação de marchas do orgulho LGBT+ naquele país.
Mas o atropelo aos direitos da comunidade não começou em Fevereiro deste ano. Trava-se um constante braço-de-ferro entre Bruxelas e alguns estados europeus que insistem na implementação de políticas que promovem um ambiente discriminatório e opressivo. Há dois anos a Polónia propôs a criação de zonas “LGBT-free” no seu território, dando um passo para o regresso ao mesmo clima de repressão social vivido por Ludwik. Podemos também acompanhar nestes últimos dias o que se passa em Belgrado, onde as celebrações do EuroPride encontram a forte oposição do governo, da igreja, da polícia e de grande parte da opinião pública. Milhares protestam na rua, envergando bandeiras russas, contra “a profanação da santidade do casamento e da família”, nas palavras do líder da igreja sérvia. É de recordar que este país, tradicional aliado da Rússia, é um dos mais fortes candidatos à entrada na União Europeia.
Mais de trinta anos depois da queda do muro de Berlim, o tempo de Nadar no escuro não parece tão distante assim e o título do romance, nascido do verão idílico vivido por Ludwik e Janusz antes de tudo desabar, assenta como sinistra epígrafe para o nosso próprio tempo.
Pedro Leitão