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Nuno Tomaz dos Santos: "Pode-se viver muito e muitos anos com infecção VIH ou SIDA, desde que se queira viver e se cumpra a toma da medicação suposta"

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Ainda a propósito do Dia Mundial de Luta Contra a Sida fomos falar com o Nuno, uma das 10 pessoas que deram a cara pela campanha "Sou VIH+ e Vísivel".

 

dezanove: Quem é o Nuno?

Nuno Tomaz dos Santos: Tenho 39 anos. Nasci e cresci em Lisboa. Sou homossexual e vivo com infecção VIH há 8 anos. Moro em Setúbal e adoro o mar. Sou o “eterno” aluno. Adoro aprender coisas novas. Adoro a minha faculdade: o ISPA. Sou actualmente estudante de último ano de mestrado em psicologia clínica e a tentar ser psicólogo clínico e investigador. Gosto de investigar a psicológica no VIH. Sou alguém que faz um mestrado em simultâneo com uma pós-graduação em sexologia clínica e terapia de casal. O que origina por vezes conversas sobre Freud e Heidegger nos jantares com os amigos e fica tudo a rir. Adoro os meus amigos! 

Sou alguém que gosta de pintar, de escrever, de fazer voluntariado e ir ao teatro. Alguém que antes de querer ser psicólogo, já quis ser actor e que trabalhou muitos anos no Teatro Mário Viegas, na altura em que fazia uma licenciatura em Gestão de Marketing e uma Pós-graduação de Comunicação em Marketing. 

Gosto da minha família e do seu companheiro com quem estou há muitos anos.  

Sou alguém que acredita fortemente que é possível ocorrer a percepção de mudanças positivas após um acontecimento potencialmente traumático para o próprio (o que é traumático está no olho de quem o vê). Como por exemplo, foi para mim a recepção do diagnóstico de infecção VIH, mas também, quando aos 11 anos recebi a informação de que a minha mãe estava com cancro e pouco tempo depois faleceu. Não são obviamente os eventos que são positivos, mas sim o modo como reagi e lidei ao longo do tempo com essas circunstâncias. Não me agarrei ao pensamento do que estava “errado”, mas sim, procurei compreender o que aconteceu.

Sou alguém que acredita que a vulnerabilidade é também uma oportunidade de transformação.

Sou alguém que acredita fortemente que é possível ocorrer a percepção de mudanças positivas após um acontecimento potencialmente traumático para o próprio. Sou alguém que acredita que a vulnerabilidade é também uma oportunidade de transformação.

 

Há quantos anos vives com infeção por VIH? Como vivenciaste o diagnóstico na tua realidade (falando da tua localidade / país / grupo social)?

Eu vivi a recepção do meu diagnóstico de infecção como um abalo às minhas crenças sobre o meu próprio mundo profundo. Eu tinha já alguma informação sobre o que significava viver com VIH, mas era de facto muito pouco. Não era zero de literacia em saúde VIH, mas era em níveis muito pobres. Havia uma ideia muito “resumida” da realidade, muito erradamente estereotipada, se não mesmo ignorância (!). Tinha a crença de que “isto não me acontecia” e basicamente nunca tinha feito qualquer teste VIH antes. As minhas relações afectivo-amorosas eram de confiança e de partilha, e por tal, sempre achei que se a pessoa com quem estava já algum tempo me dizia que podia confiar, era normal fazê-lo. O problema são as pessoas em quem podemos confiar. Não há qualquer problema porque se nos amam e amamos e existe tempo de relação, respeito e confiança, faz parte haver receptividade no acto de confiar. Só que, por vezes a pessoa que não equaciona que tem infecção, pode ter, simplesmente porque pode estar assintomático e também ela achar que “isto não lhe acontece”.

Na altura quando recebi o diagnóstico, senti sobretudo três coisas: solidão, quase sem permissão para falar sobre a infecção VIH ou a SIDA, e um enorme receio de morrer sem poder viver tudo o que queria viver. O medo de morrer originou-me uma espécie de alteração do tempo-próprio. Era como se tivesse uma necessidade de “sentido originário, primário, por existir”. Levei algum tempo a compreender exactamente o que significa I=I, ou seja, indetectável igual a intransmissível. Levei algum tempo a perceber que sou um em 64 257 pessoas que vivem também com infecção só em Portugal e que somos mais de 37,7 milhões em todo o mundo. Isto se falarmos apenas nos casos de infecção diagnosticados. E que se pode viver muito e muitos anos com infecção VIH ou SIDA, desde que se queira viver e se cumpra a toma da medicação suposta. 

Na altura quando recebi o diagnóstico, senti sobretudo três coisas: solidão, quase sem permissão para falar sobre a infecção VIH ou a SIDA, e um enorme receio de morrer sem poder viver tudo o que queria viver.

O sentimento de quase sem permissão para falar sobre a infecção VIH ou a SIDA, conduziu-me à internalização do estigma, ou seja, na prática sentia vergonha, culpa e julgava-me muito moralmente. Isto acabou por afectar os meus níveis de imunidade e a minha recuperação pós-diagnóstico que levou algum tempo até estabilizar. Tive total apoio do meu companheiro, da minha família, dos amigos e do meu médico. Mas é claro que, quando se vive com estigma internalizado, é mais fácil ficarmos ainda mais vulneráveis a actos de estigma e discriminação externos. 

Pode-se viver muito e muitos anos com infecção VIH ou SIDA, desde que se queira viver e se cumpra a toma da medicação suposta. 

Quando recebi o diagnóstico, tinha erradamente o estereotipo de que uma pessoa que vive com infecção VIH é ou apresenta-se com um corpo adoentado. Algo tonto! A ideia ou percepção que cada um de nós tem sobre o seu corpo, desempenha um papel fundamental na construção da nossa identidade. Recordo-me que no hospital o médico dizia que era só tomar o comprimido e que não precisava de me preocupar com mais nada. E de facto, numa lógica biológica e corporal, era só tomar o comprimido, mas houve um “mundo” de conhecimento que foi preciso abarcar depois. Diria que 40 anos de evolução de ciência em VIH num instante de absorção mental, simplesmente porque os níveis de literacia em saúde e especificamente em VIH e SIDA eram muito pobres. 

Tive total apoio do meu companheiro, da minha família, dos amigos e do meu médico. Mas é claro que, quando se vive com estigma internalizado, é mais fácil ficarmos ainda mais vulneráveis a actos de estigma e discriminação externos. 

 

Como é viver com VIH no século XXI?

É viver com uma infecção que sabemos que se fizermos a medicação, ela estará silenciosa e não evoluirá. Eu tomo um comprimido por dia e não tenho qualquer mal-estar, vómito ou qualquer tipo de desconforto. Tomo o comprimido todos os dias ao pequeno-almoço. Tento que seja sempre à mesma hora, mas se não for também não vivo um drama por isso. No início tive alguma dificuldade em adaptar-me à medicação, mas passado um ano, deixei de ter dificuldades. 

É viver com algo crónico que dentro das doenças crónicas é muito provavelmente a melhor, a que tem menos impactos actualmente. 

No início tive alguma dificuldade em adaptar-me à medicação, mas passado um ano, deixei de ter dificuldades. 

O VIH ou qualquer que seja a doença ou vulnerabilidade que tenhamos, obriga-nos a sair para fora da nossa zona de conforto sempre. Isso significa na prática, que se uma pessoa quando recebe um diagnóstico de infecção VIH se se sente sozinho, tem que pedir ajuda. E são várias as associações na área que podem ajudar, neste processo de adaptação. Eu por exemplo, demorei algum tempo até chegar à Abraço. Mas atenção, também é fundamental que os profissionais que trabalham nesta área estejam atentos ao facto de que por vezes pode ser difícil para uma pessoa que recebe o diagnóstico pedir ajuda.  

Quando uma pessoa recebe um diagnóstico de infecção VIH se sente sozinho, tem que pedir ajuda. E são várias as associações na área que podem ajudar, neste processo de adaptação.

O desconhecimento, a falta de conhecimentos, a ausência de estudos, sempre prejudicou muito as pessoas. Desde logo se uma pessoa tem menos conhecimentos, isso vai ter impacto na forma como se pode auto-cuidar. 

É fundamental que os profissionais que trabalham nesta área estejam atentos ao facto de que por vezes pode ser difícil para uma pessoa que recebe o diagnóstico pedir ajuda.  

E no caso do VIH, pode matar. Porque se a pessoa acredita que “isto não me acontece”, acaba por não fazer o teste VIH. Quando faz o teste e percebe que vive com VIH, se não for obter informação, pode acreditar que vai morrer mais cedo do que é suposto. Pode simplesmente rejeitar o medicamento disponível, e ai sim, desenvolver SIDA e desta desenvolver uma outra qualquer doença ainda bem pior e vir a falecer. Este estereótipo, em que resumimos a realidade, pode matar pessoas. 

Porque se a pessoa acredita que “isto não me acontece”, acaba por não fazer o teste VIH. Quando faz o teste e percebe que vive com VIH, se não for obter informação, pode acreditar que vai morrer mais cedo do que é suposto. Pode simplesmente rejeitar o medicamento disponível, e ai sim, desenvolver SIDA e desta desenvolver uma outra qualquer doença ainda bem pior e vir a falecer. Este estereótipo, em que resumimos a realidade, pode matar pessoas. 

Não é possível e nem necessário que todos saibamos tudo sobre VIH ou SIDA, ou qualquer outra doença crónica ou questão de saúde. Todos nós temos pré-conceitos acerca de algo. E não existe mal em tê-los. E na prática, não vamos deixar de resumir a realidade. É assim que funciona a nossa mente. Mas podemos e devemos também (!) desafiar estas ideias de resumo das realidades, estes pré-conceitos. O mundo é colorido, não é a preto e branco. 

É claro que estou a falar como Português e europeu. Em Portugal e sobretudo na Europa, as pessoas que vivem com VIH tem acesso a medicação gratuita e sobretudo temos algumas leis que nos protegem, sendo que poderíamos ter mais, nomeadamente a Lei do Esquecimento poderia ser melhorada. Continua a ser difícil ter seguros por exemplo. 

Diria que a principal dificuldade do VIH hoje em dia no mundo e em especial em Portugal é o estigma. O estigma continua a existir. Em menor escala é certo, mas continua a existir. Deixou de se ouvir relatos de pessoas que vivem com VIH com familiares de que se desinfecta tudo com lixívia. Mas continua a ser desconhecido e estranho para o senso comum uma relação sexual entre um casal serodiscordante sem preservativo.

Fora da comunidade de pessoas que vivem com VIH continua a existir muita ausência de literacia em saúde. Ainda se ouve discursos fora da comunidade próximos do que foi dito nos anos 80, quando surgiram os primeiros casos em Portugal. 

Temos uma terapêutica farmacológica altamente eficaz, mas muitas pessoas continuam a pensar, tal como eu também pensei no início do meu diagnóstico, nos estereótipos dos anos 80. E há conta disso, continuam a existir dados elevadíssimos de taxas de depressão, stress pós-traumático, suicídio e não adesão à terapêutica em pessoas que vivem com infecção por VIH. 

Continuam a existir dados elevadíssimos de taxas de depressão, stress pós-traumático, suicídio e não adesão à terapêutica em pessoas que vivem com infecção por VIH.

 

Achas que ainda há desinformação relativamente ao VIH? 

Tenho a certeza que sim. Poucas pessoas sabem o que significa I = I, ou seja, indetectável igual a intransmissível. Continua a existir uma percepção aumentada da ameaça de morte ou doença. A taxa de suicídio em pessoas que vivem com VIH é superior quando comprado com outras doenças crónicas, como as doenças cardiovasculares ou o cancro. Se houvesse mais informação, talvez os níveis de estigma no VIH e de preconceito sexual, não fossem tão elevados. O VIH ainda continua a estar associado a uma espécie de desaprovação moral e de práticas ditas desviantes, que na prática tem embutido um preconceito sexual em minorias. 

Os níveis de sintomas de stress pós-traumático em pessoas que vivem com VIH continuam a ser elevados. 

Devia de haver mais informação e investigação sobre o VIH e a SIDA. Devia de haver mais investigação e intervenção com pessoas que vivem com VIH e sobretudo com enfoque no crescimento pós-traumático, no bem-estar e na qualidade de vida. 

 

O que te levou a participar na campanha “Sou VIH+ e visível”?  

Porque é necessário mudar o paradigma social. A ciência já arranjou forma de permitir que alguém como eu que vive com VIH, possa viver uma vida com qualidade, bem-estar e longa. É preciso informar. Dar a conhecer. 

O estigma e a discriminação sobre as pessoas que vivem com VIH é real!

Antes de participar nesta campanha, fiz parte de uma equipa de entrevistadores para um projecto sobre os níveis de estigma nas pessoas que vivem com VIH. Confesso, fui fortemente influenciado pelo sofrimento que ouvir de muitas pessoas. O estigma e a discriminação sobre as pessoas que vivem com VIH é real! O estigma no VIH é simplesmente a coisa mais parva que existe! Alguns investigadores que se debruçam em tentar explicar as causas de origem do estigma no VIH, defendem que assentam em  crenças centrais como a morte, o contágio e a debilidade corporal. A actual medicação farmacológica para o VIH, e que existe desde 1996, é altamente eficaz e impede qualquer um dos três argumentos.  

 

Entrevista de Ricardo Falcato e Marta Pimentel Santos