Por um prato de lentilhas
O Mundial da Vergonha já acabou. Já podem voltar para o vosso modo de ultraje performativo e de solidariedade oportunista habitual, com que compram o selo de cidadãos de bem com que se pavoneiam nas redes sociais.
Já podem novamente colocar na lapela o vosso pin de Aliados, com que tentam pedagogicamente ensinar à comunidade LGBTQIA+ o que ela é ou não é e de que forma pode ou não participar na sociedade, já que não quiseram usar a braçadeira arco-íris quando era realmente momento para o fazer.
Tirem a dignidade, tirem a congruência, tirem tudo ao burguês remediado, mas não lhe tirem a segurança do fabricado sentido de pertença ao colectivo em que ele tenta se camuflar. Criatura mais covarde ainda está por surgir, mas como o Almada Negreiros dizia n’ “A Cena do Ódio”,
“Ó Horror! Os burgueses de Portugal
têm de pior que os outros
o serem portugueses!”
Passamos o ano a dizer mal deste país, damos ouvidos a populistas que só o querem explorar em benefício próprio, fazemos resistência passiva às regras que poderiam realmente melhorar a nossa sociedade (porque o burguês é sempre especial demais para seguir regras e elas existem apenas para os outros), perdemos mais tempo a falar da corrupção do que da fraude, mas… chega o Mundial e “somos todos Portugal”. Quer queiramos, quer não.
Os mesmos que rasgam vestes por uma suposta «liberdade de expressão» - que mais não é do que a luta pela permanência dos privilégios dos já injustamente privilegiados, a luta pelo direito a ofender, pelo direito a atacar, pelo direito a permanecer preconceituoso, en suma, a luta contra o Progresso e a Dignidade Humana - são os primeiros de pedra na mão na coluna da frente do linchamento de quem ousar dizer, na sua liberdade de expressão, “não assisti ao Mundial porque não quis assistir”.
São estes, beatos, os mesmos que depois usam os países Árabes mais retrógrados como espantalhos para se defenderem das acusações de racismo, machismo e LGBTQIA+fobia por que são uma e outra vez criticados - quando usam a sua expressão (a expressão do seu ódio) para nada mais do que atacar a integridade desses mesmos grupos em nome dos quais se indignam, quando dá jeito, contra “os malvados Árabes e Muçulmanos”.
Usam o Progressismo - que odeiam, note-se - contra o próprio Progressismo e, no embalo, ainda praticam mais preconceito, mais xenofobia e mais racismo, ao tomarem todos os Árabes e Muçulmanos por esses fanáticos que agitam como bichos-papão, e aos quais, na realidade, mais se assemelham do que admitem.
Quem os vê criticar estes países por tais motivos nunca suspeitaria que a sua agenda Ultraconservadora para os nossos países é exactamente a mesma dos Ayatollahs desta vida contra os quais tanto se ufanam - uns, em nome de Maomet; os outros, em nome de Jesus e da família tradicional, de que se auto-intitulam os defensores que ninguém pediu - todos contra o Futuro, o Progresso, o Humanismo, a Sociedade. Seria irónico se não fosse consciente e hipocritamente calculado para ser assim.
Se há algo que não falta ao tema, contudo, é a ironia. Não há maior ilustração da capacidade e da selectividade mnemónica do ser humano do que ouvir um cidadão Português a falar de futebol: mais depressa desfia, jogo por jogo, época por época, campeonato por campeonato, toda a composição do plantel da nossa equipa e da de cada adversário, os golos que foram marcados, os cartões amarelos e vermelhos assinalados, as lesões sofridas e infligidas e as substituições efetuadas e a que minuto se deu cada uma destas situações, do que o mesmo cidadão é capaz de dizer o nome de todos os Deputados que actualmente nos representam na Assembleia da República. De 10% deles, vá. E qual das duas coisas é mais consequente para as nossas vidas?
A minha luta não é contra o entretenimento, note-se. Eu também gosto de me divertir. Peço apenas uma reflexão. Entretenimento é entretenimento. Coisas sérias são coisas sérias.
Submissos a patrões que os exploram todos os dias, enquanto lhes martelam a narrativa que o problema é a produtividade, de ouvidos cheios com a lenda da meritocracia e de sonhos (que são sempre p’rá amanhã) alimentados a frases inspiracionais tiradas do Instagram por ricos e poderosos que à sua custa vivem anafadamente, os Portugueses chegam ao supermercado e sobra-lhes mês ao fim do ordenado, vivem em casas frias - se não quartos - com rendas altas (das mais altas do mundo, repare-se), estão constantemente a viver entre a nostalgia de um passado romantizado e um futuro fora de portas…
Mas critiquem um milionário que fugiu ao Fisco Espanhol e que por isso teve de pagar uma multa de quase 19 mil milhões de euros e ouçam o rugido da turba a avançar sobre vós. A mesma turba que coloca a razão de todos os seus males… na corrupção. A menos que envolva a FIFA, claro.
Que não sou adepto de futebol, por esta altura não será segredo - nem nunca o tentei esconder. Além de ser mais adepto de modalidades individuais, fiquei farto da masculinidade tóxica do futebol. Fiquei farto da violência nos estádios, do sentido de impunidade, do racismo e, claro, da misoginia e da LGBTQIA+fobia. Fiquei farto da forma como cega as pessoas e da deslocação de meios de coisas realmente úteis para aquilo que deveria ser meramente entretenimento - e que muitas vezes nem isso é.
A minha luta não é contra o entretenimento, repito. Fiquei foi farto de muitas coisas, inclusive que me justificassem estas produções megalómanas como supostamente sendo valiosas para os países acolhedores. Hoje, sabemos que é justamente o contrário e por isso é que só acontecem em países onde não há Democracia - que castigaria os Governantes que nessas loucuras entrassem, posteriormente, quando viesse a factura. Hoje já sabemos largamente, aliás, que estes eventos internacionais servem apenas como estratégia de relações públicas para que estas Ditaduras precisamente se tentem branquear internacionalmente.
Fiquei farto de verificar que o futebol é tudo menos o desporto e de como ele seca tudo à sua volta, no nosso país, continuando a relegar para décimo quinto plano tudo o mais, inclusive todas as restantes modalidades.
Mas não é nada disso que está hoje aqui em questão. Nem sequer é o Ronaldo e de como tudo à volta dele se torna mais importante do que devia. Não é, por isso, também, sobre como o futebol é usado como ferramenta para manter as massas infantilizadas e alienadas dos seus problemas reais.
Não há nada de bom que o futebol pudesse ter aos meus olhos, que neste momento compensasse tudo o que ele tem de errado. Mas isto não é sobre mim, nem sobre como eu acho triste que a única coisa de que fale sobre este país cheio de cientistas, artistas, heróis de valor, seja um tipo talentoso, dentro da sua área, que muito utilmente cumpre o mito do rapazinho que veio do nada e chegou ao topo do mundo, com que tanta gente se mantém esperançosamente aprisionada à roda de rato desta sociedade que claramente precisa de uma renovação em prol da Justiça Social. Não é sobre isso.
É sobre o sentido de prioridade daqueles que assistiram aos jogos e estiveram a «sofrer» pela selecção: o abuso diário de que são alvo milhares de mulheres e pessoas LGBTQIA+ no Qatar não chegaram para fazer-vos dizer “não tocamos nisso nem com um pau de 5 metros”; 6500 escravos mortos, para que este espectáculo fosse posto de pé para vocês, não chegaram para que sentissem repulsa suficiente para desta vez, pelo menos, prescindirem de participar neste retrocesso civilizacional.
“Ó burguesia! Ó ideal com i pequeno”
Vocês sabem lá o que é sofrer.
Não admira que o nosso Presidente continue a ter a atitude vergonhosa que tem em relação à ICAR, nos casos de pedofilia. Agora sabemos que isso dos Direitos Humanos é p’rá amanhã. “O que importa é a equipa”. E assim se passam as décadas. Prioridades.
Mas já acabou. Já fomos eliminados. Valeu a pena, vender por tão pouco a vossa dignidade?
Imaginem o grau de privilégio em que alguém vive, ao ponto de sentir que o seu entretenimento não pode ser momentaneamente sacrificado por um gesto de solidariedade para com o seu semelhante, que sofre e morre, enquanto ele se diverte.
O nome disso é "cumplicidade". Mas não há problema: em Junho do ano que vem, lá vos teremos outra vez com as bandeirinhas arco-irís nos vossos avatares. Sic gloria transit mundi.
João Barbosa