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Nem na mata se encontram histórias assim

O Pai e a a segunda gaveta da mesinha de cabeceira do lado esquerdo

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Avisos de gatilhos / trigger warnings: tentativa de homicídio, suicídio, violência armada e homofobia.

O Pai tem um revólver. O Pai tem um revólver na segunda gaveta da mesinha de cabeceira. O Pai tem um revólver na segunda gaveta da mesinha de cabeceira, do lado esquerdo, debaixo das meias. Ele tem 13 anos. Entra no quarto do Pai, às escondidas. Senta-se na cama. Olha a gaveta. Não consegue pegar no revólver. Ele nunca tocou num revólver. As mãos tiram uma bala. Voltam a atar o saco.  Guardam-no exactamente mesmo sítio. O saco tinha 31 balas. Ele entrou no quarto 13 vezes. Ficam 22 balas. Agora existe um outro saco. Está guardado no Esconderijo. Tem 9 balas. Ele não sabe porque é que fez isto. Acho que não quer que o Pai se mate. O Pai toda a vida ameaçou em matar-se. Um dia eu mato-me. Diz o Pai. Um dia eu mato-me.

Ele acha que o Pai nunca será capaz de se matar. Ele acha que os gritos morrem na boca e não dançam nas mãos. Ainda assim, tentou diminuir 9 vezes a possibilidade de o Pai o fazer. Um dia, atrás da porta, ouve a voz do Pai. 

Se Ele for paneleiro, dou um tiro na minha cabeça. A frase é essa. Se ele for paneleiro, dou um tiro na minha cabeça.

Existem frases que nos ficam presas na cabeça, como carrapatos. Os carrapatos, se não forem removidos, ficam presos por um ou dois dias na pele. Quanto mais tempo ficarem presos, mais engordam com o sangue. Existem frases que nos ficam presas na cabeça, para sempre. Ele senta-se sozinho, no esconderijo. Se Ele for paneleiro, dou um tiro na minha cabeça. A frase é essa. Se ele for paneleiro, dou um tiro na minha cabeça.

O meu pai vai matar-se. A frase é essa. O meu pai vai matar-se. Ele tem 14 anos. E o Pai vai matar-se. Nessa noite não sai do esconderijo. Nessa noite não sai do esconderijo, no sótão, no buraco ao fundo do lado direito. 

Ele quer dizer-lhe, sou teu filho. Sou teu filho. E isso, devia chegar-te. Ele quer dizer-lhe, sou o mesmo dos iogurtes, do patinho vermelho, do forte e das almofadas dos sofás. Sou teu filho. Sou o mesmo que te pediu para naquele dia estares à porta da escola no final do dia. Sou o mesmo que levaste ao jardim, quando te contei que os rapazes da escola que queriam tirar a bicicleta. Sou teu filho. E isso, devia chegar-te.

Chovia muito no País da Neve. Não sei como, o patinho vermelho de plástico voou pela janela. Tu desceste todas as escadas, de todos os andares do prédio. As mãos salvaram o pato vermelho. Quando entraram em casa, estavam os dois molhados. Tu e o pato. Lembraste? Eu tinha 3 anos. não sei como é que me lembro desta memória.   

Porta-te como um homem. Diz o Pai. Porta-te como um homem. Como é que os homens se portam? Gritam por causa dos braços e das mãos? Colam a mão pesada numa cara? Escondem-nos em castigos, quando somos apanhados a dançar? Porta-te como um homem. Diz o Pai. Porta-te como um homem. Ele quer dizer-lhe, eu sou um homem. As minhas mãos dançam, mas eu sou um homem. A minha voz é aguda, um pouco metálica e nasalada, mas eu sou um homem. Gosto de rir e dançar às escondidas, mas eu sou um homem. Ele quer dizer a todos os pais, somos homens que um dia vão gostar de homens. Mas isso, não nos faz ser menos homens, menos filhos, ou menos humanos. Não. Não somos todos iguais. Mas temos todos o mesmo valor. Somos vossos filhos. E isso, devia chegar. Sou o teu filho. E isso, devia chegar-te.

Quer dizer-lhe, sou uma pessoa. Não sou um crime. Não sou uma doença. Não sou estranho, nem esquisito, nem anormal. Quer dizer-lhe que não precisa de ter vergonha dele. Quer dizer-lhe, que não precisa de se matar. Quer dizer-lhe, eu tenho sonhos, uma vida e alguns pesadelos. Um dia vou ter um namorado. Um dia, vamo-nos encontrar à frente rio e vamos dar o primeiro beijo. Um dia, vamos dormir abraçados e tocar com o pé, no pé do outro. 

O Pai tem um revólver. O Pai tem um revólver na segunda gaveta da mesinha de cabeceira. Mas Ele quer dizer-lhe, Pai, não te mates. Não te mates, por favor. Esquece o revólver e as balas. Esquece a segunda gaveta da mesinha de cabeceira, do lado esquerdo e esquece as meias. Eu preciso de ti. És meu Pai. Só te tenho a ti. És meu Pai. Mesmo que tu não percebas que eu sou teu filho e que isso devia chegar-te.

 

Retirado do da obra: “A Última Carta ao meu Pai”

Peter Pina 

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