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O Pai, os rapazes da escola e os trejeitos da bicicleta

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Estávamos no verão de 90, de uma vila desenhada, exactamente no meio do nada. Os pedais da bicicleta avançam num sorriso por descobrir. Se não tivesses esse teu jeito, até eras giro. Disse a Teresa sobre os trejeitos da bicicleta dele. A bicicleta não percebeu o que é que aquilo queria dizer. Antes do Verão terminar, Ele guardou-a na garagem. Ele tinha ouvido os rapazes da escola dizerem que lhe iam tirar a bicicleta. Vamos tirar-te a bicicleta. Disseram eles. Vamos tirar-te a bicicleta. As rodas rodavam à velocidade da roda do sol. Os pés adolescentes fundiam-se nos pedais, como se o seu corpo fizesse parte desse instrumento de fugir com duas rodas. 

Um dia o Pai tentou. Ele contou-lhe que os rapazes da Escola lhe tinham tentado tirar a bicicleta. Vamos ao jardim. Diz o Pai. Tu ficas numa ponta. Eu fico na outra. Ao rapaz que te tentar tirar a bicicleta, atiro-o ao lago, a ele e à bicicleta. Não sei como, pela primeira vez a sua voz gaguejante libertou do esconderijo esse segredo. O segredo do medo. As palavras arrancadas da sua voz assustada, desenhavam na verdade o medo de andar na rua, o medo de ir para a escola e o medo dos rapazes da escola. Contudo, essa voz tremida, não conhecia o equilíbrio da balança dos medos. Ele desconhecia em si, se o verdadeiro medo, do outro lado da balança, era o de ficar sem a bicicleta e temer dizer ao pai que tinha sido roubado. Isso seria humilhante. Seria vergonhoso o filho de um homem tão alto, tão austero e assustador, não ter suficiente voz para justificar o desaparecimento da bicicleta. A vergonha da vítima tinha sido real, quando lhe rasgaram a mochila na escola e fingiu ter sido culpa sua. Não queria voltar a sentir essa mentira.

Vamos ao jardim. Diz o Pai. Tu ficas numa ponta. Eu fico na outra. Ao rapaz que te tentar tirar a bicicleta, atiro-o ao lago, a ele e à bicicleta. Esperam os dois no jardim. Ele numa ponta. O Pai na outra. O jardim fica parado a olhar para eles. Ao centro, a água verde do lago espera companhia. Mas o jogo estava viciado. A qualquer momento, todos mudam as regras, sem que ninguém se aperceba. As árvores escondem os rapazes da escola. Quando Ele olha novamente, as árvores já não escondem os rapazes da escola. Obviamente que quando o viram com o Pai, nem sequer se aproximaram. Nesse dia, Ele queria que se metessem com Ele. Que lhe tirassem a bicicleta. Ele queria que lhe baixassem as calças. Que o chamassem de “o menina”, para poder provar ao Pai, que Ele merece ser protegido. Nesse dia, nem um rapaz se aproximou. Nem sequer um rapaz o insultou. Nem sequer um único rapaz lhe bateu. Ninguém o chamou de maricas, nem rabeta, nem sequer de paneleiro.

Antes do Verão terminar, Ele guardou a bicicleta na garagem. Deixou-a de castigo até começarem novamente as aulas. Os pés cresceram. Os pedais encolheram. As rodas já não rodam. Nessa garagem escondida pelo tempo, encontrou aquilo que um dia foi a sua bicicleta, os seus medos e um móvel cheio de parafusos, porcas e pregos. O Pai não se desfazia de nada. Um dia pode vir a dar jeito. Diz o Pai. Um dia pode vir a dar jeito. Não voltou a fazer as pazes com a bicicleta. As mãos retiram todos os parafusos e pregos, de todas as gavetas que o Pai guardou. É urgente esvaziar essa casa, na qual o Pai já não vive. O Pai já não está. Decidiu ir-se embora. E apesar de Ele nunca ter voltado a fazer as pazes com os passeios de Verão, lembrou-se que um dia, o Pai tentou. Um dia o Pai tentou protegê-lo. Um dia o Pai tentou ser Pai. Afinal nem tudo são más memórias do Verão de 90, numa vila desenhada, exactamente no meio do nada.

 

(retirado do texto “A Última Carta ao meu Pai)

Peter Pina

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