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O que podemos todes aprender com o Dia da Memória Trans

Marco Graça

Este Sábado dia 20 de Novembro, a celebração da Semana de Visibilidade Trans encerrou, como sempre desde a sua criação, com um dia antitético ao espírito da semana, um dia em que nos juntamos para relembrar as pessoas que continuamos a perder para a transfobia. Um dia em que honramos a coragem que estas pessoas tiveram. Coragem para lutarem pela sua felicidade, num mundo cis que prioriza o seu próprio conforto aos direitos de pessoas trans, e deixar a sua marca em quem as amou. Antes, durante e no final do manifesto, anunciou-se a desconcertante notícia que desde o Dia da Memória Trans anterior, 375 pessoas trans, pelo mundo inteiro, já não se encontravam entre nós, vítimas de crimes de ódio. 

 

 

E aqui se evidencia a razão pela qual este dia marca o final de uma semana dedicada à Visibilidade. Porque Visibilidade salvaria a vida de muitas destas pessoas. Porque estes números são uma estimativa em nada fiável, já que forças de investigação viram os olhos à identidade de género de alguém quando já não está cá para a defender. Isto dito por mim para vos poupar ao discurso de uma pessoa que partilhou o seu luto connosco. Usou o microfone aberto no final da manifestação para afirmar o seu amor, porque é o mínimo que pode fazer por quem ama no 17º ano em que vê o seu pedido por uma autópsia adiado. Se apenas o pai dessa mulher pudesse ter visto essa pessoa como ela viu no dia do seu casamento em vez de lhe recusar ajuda quando mais era crítica, talvez seriam uma das lindas famílias que vieram marcar presença nos discursos.

 

Estatísticas de desemprego também vêm apenas homens e mulheres, escondendo de todes nós que acesso têm pessoas não-binárias a rendimentos estáveis e condições dignas para viver. Mais invisíveis. A DGS, quando forçada a ver pessoas trans pela primeira vez ao ser confrontada por pessoas que queriam saber como proceder em relação a uma vacina que era desaconselhável a mulheres cis, remeteu a visibilidade destas para médiques assistentes. Numa infeliz demonstração da sua ignorância no que toca à relação de pessoas trans com profissionais de saúde, acabou por despejar para associações a tarefa de investigar, ao melhor das suas capacidades como colectivo de voluntáries, qual rumo seria o mais seguro para pessoas trans. 

 

Um homem trans exasperou também nos minutos de microfone aberto que 3 anos após ser-lhe possível mudar o seu género legal, na altura com custo de 200€, que ainda era chamado por um nome que não lhe pertencia nos serviços de saúde. A cada ida ao hospital, o seu atendimento demorava o triplo porque tinha que lutar pela sua identidade contra sistemas informáticos e humanos, mostrando que a lei de autodeterminação de género de 2018, reconhecida como vanguardista no resto da Europa, ainda é para muites apenas teoria optimista. Em prática, o único conselho que recebem é pedir a todos os centros de saúde em que entrem para actualizarem essa informação. Tendo apenas ao seu dispor o nobre trabalho de activistas trans e uma rede que atenta quais sítios que deveriam ser pontos de socorro são meras promessas de mais preconceito, neste momento a saúde em Portugal é infeliz cúmplice de mais invisíveis.

 

A estas áreas fundamentais, aliam-se a história, que ainda procura ver civilizações, antigas ou não tão antigas, e a história privada de ícones que moldaram a nossa sociedade como a experienciamos hoje através de uma lente binária. Este esforço, de quem tem poder para escolher como vemos o passado, em esconder quem se recusa a ver, dá a pessoas ignorantes a confiança para tratarem a luta constante das pessoas trans erroneamente como algo moderno e passageiro. E é confortando-se nesta ideia que identidades trans são uma rebelião passageira que só este ano se conseguiu uma promessa de que o governo vai fazer os possíveis para que as forças que esperamos que nos protejam a todes, sem excepção, comecem a ver pessoas trans. A vê-las como merecedoras da dignidade e segurança que as pessoas cis usufruem. A vê-las na posição vulnerável que se encontram que torna tarefas banais que fazemos em riscos sempre presentes à sua vida. 

 

Para uma mulher trans que amaldiçoou também na manifestação o papel da polícia em desencorajar a si e ao seu companheiro de denunciarem a agressão de que foram vítimas no Sábado anterior no Bairro Alto por um grupo de 10 pessoas, por ainda não ser uma cidadã portuguesa legalizada, mesmo tendo saído do Brasil há mais de um ano, esta acção decerto chegou tarde demais. Também chegará tarde demais a iniciativa para alargar acções de sensibilização a todas as áreas urgentes para pessoas trans começarem a experienciar verdadeira integração.

 

Na área da educação, onde uma criança trans lamentou também não experienciar a aceitação que o resto da turma desfruta por parte de uma professora quando ela se recusou a usar o nome que lhe pertence por achar a sua apresentação inaceitável. Na área do emprego, onde um homem trans tentou corajosamente testar as águas do local onde queria trabalhar, confidenciando ao seu patrão a sua identidade, para concluir ontem na manifestação que perdeu por isso a sua posição. E em muitas mais áreas, desde a justiça a funcionáries públiques que trabalham em atendimento, passando pelo acesso a habitação acessível e direito à segurança em todos os passos no pedido de asilo em Portugal. Por agora, nem a mulher que criou a marcha do orgulho do Porto consegue ter uma rua a homenagear o seu nome, mostrando que a política em si será um obstáculo constante ao trabalho em cada uma destas áreas. Mas Gisberta estará sempre presente em todas as marchas, Porto e onde seja.

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E a título pessoal, o que cada pessoa, independentemente do seu poder ou influência, pode fazer como aliada? Recordo-me das minhas experiências na minha universidade no preciso ano em que a lei de autodeterminação de género passou, onde era comum encontrar grupos de estudantes nos bares a gozar com perfis de mulheres trans, troçando pessoas que estavam agora a colher os frutos do trabalho que tiveram, para se reconhecerem ao espelho como elas próprias e cada dia mais felizes por isso, como se fossem cenários sem agência. Desafios para as conquistas sexuais deles que iriam condicionar a sua orientação sexual e assim, o seu status social. E quando ao sair de uma after-party da marcha de orgulho LGBTQIA+ de Lisboa com duas mulheres trans, um homem embriagado deu-se ao trabalho de sair do seu grupo de amigos e atravessar a estrada para ir insultar a sua aparência e deliciar-se com o nosso desconforto, fazendo-nos recear como correria este encontro se não fôssemos maiores em número.

 

Este é um ano que promete que transfobia cada vez mais terá destaque nos mídia, com as maiores estações emissoras do Reino Unido a publicar artigos inflamatórios sem credibilidade a puxar narrativas nocivas que tratam pessoas trans como predatórias, com a Europa a exercer uma perigosa falta de controlo enquanto muitos países que antes estavam na vanguarda em direitos LGBTQIA+ vêem os seus direitos a regredir a velocidades tão desconcertantes que já geram novas ondas de migração. É então importante traçar a semelhança entre este tratamento público, que ameaça tratar-se comum em Portugal também, e estas atitudes mais locais que eu e muites experienciamos. Porque é que cada debate sobre pessoas trans é sempre puxado para questões de aparência ou atracção sexual, com pessoas a mostrar o seu preconceito ao pintá-las como predatórias ou desejosas de atenção? Porque é que a minha atracção, seja sexual, romântica ou mais, deve em caso algum ser parte de um debate sobre os direitos de uma comunidade? Porque é que uma pessoa com uma expressão de género à qual não estou habituado constitui um convite para ir directamente confrontar as suas escolhas de aparência ou fazer assunções sobre aspectos da sua vida que não me dizem respeito?

 

Porque é que cada debate sobre pessoas trans é sempre puxado para questões de aparência ou atracção sexual, com pessoas a mostrar o seu preconceito ao pintá-las como predatórias ou desejosas de atenção? Porque é que a minha atracção, seja sexual, romântica ou mais, deve em caso algum ser parte de um debate sobre os direitos de uma comunidade? Porque é que uma pessoa com uma expressão de género à qual não estou habituado constitui um convite para ir directamente confrontar as suas escolhas de aparência ou fazer assunções sobre aspectos da sua vida que não me dizem respeito?

 

O mais perigoso é que esta atitude que observo não me parece apenas fruto de um direito que não se discute que muitas pessoas cis usufruem em hierarquizar pessoas na sociedade consoante se conformam aos papéis actuais do género e o status quo do mercado de relações cisheteronormativas. Não me parece apenas a desconcertante realidade de que pessoas trans são sempre primeiro tratadas como objecto de entretenimento, curiosidade mórbida ou fetiche. Parece-me projecção das suas realidades individuais. Homens cis mostram-se desconfortáveis com a ideia de casas de banho neutras não em pequena parte porque reconhecem a realidade desconfortável da relação que homens a quem chamam amigos têm com consentimento. Mulheres cis seguem-nos em pensamento porque a infeliz educação que o mundo lhes dá no que toca ao que esperar de homens dificulta a sua visão de qualquer pessoa com características tradicionalmente masculinas nesses espaços como algo que não seja uma ameaça, ignorando que a existência de homens trans faz com que tratar uma casa de banho como uma divisão por género atribuído à nascença não melhorará esse receio.

 

Muitas pessoas que aderem à narrativa que pessoas trans irão acusá-las de transfobia, por recusarem avanços românticos ou sexuais, na verdade estão a pôr-se no papel da pessoa cujos avanços estão a ser recusados. E estão a reconhecer que quando foram rejeitadas, não trataram as pessoas como gostariam de ser tratadas, tentando denegrir, humilhar e minar a vida íntima de quem lhes disse não. Activistas trans suplicam para que não olhem para pessoas trans, seja no mundo dos encontros ou em qualquer outro, como um monólito, humanizando a comunidade, respeitando que cada pessoa tem uma vivência diferente e muito mais para dar para além de características sexuais. Nunca foi uma questão de ter poder sobre quem alguém aceita ou rejeita em questões de relacionamentos, mas sim de dar às pessoas as ferramentas para poderem fazê-lo à vontade sem magoar uma pessoa trans e isolá-la mais. Porque foi essa a queixa que uniu duas pessoas na manifestação, de idades, países e identidades bem diferentes que discursaram no microfone. Que ser trans em Portugal ainda é uma experiência desoladamente solitária. E a este pedido, pessoas cis apenas ouvem que pessoas trans vão querer abusar poderes que sempre foram garantidos a pessoas cis para agir como elas próprias agiriam nos seus piores momentos.

 

Por isso, uma óptima ideia do que aliades cis podem começar a fazer nestas situações em que perguntam a alguém este cenário hipotético sistematicamente batido do que fariam perante o interesse de uma pessoa trans, começava por: questionar a aplicação real desse cenário, visto que pessoas trans tendem compreensivelmente a minimizar interacções destas pela sua própria segurança; responder tocando no que essa questão esconde e realmente importa. Que há liberação em não deixar o valor de alguém ser ditado pela minha atracção. Que o que a sociedade em que me insiro me ensinou a almejar em termos de como quero ser percebido ou com quem quero estar não é algo que devia ter tanto poder sobre a minha vida. Que as minhas melhores virtudes e vocações podem muito bem estar escondidas, à espera que as desperte com amizades e outras imensas formas de conexões genuínas, se der a pessoas trans a oportunidade de se sentirem seguras entre mim. E depois da manifestação, posso dormir mais uma vez descansado por não ser o único com esta visão, graças aos lindos casais e famílias que lá vi.

 

Marco Graça

Co-Lead da Task Force LGBTQIA+ do Volt Portugal

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