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Paolo Gorgoni: "Reescrever a narrativa sobre as pessoas com VIH é tão importante quanto lutar para que a resposta à epidemia melhore"

PaoloGorgoni

A propósito do Dia Mundial de Luta Contra a Sida fomos falar com Paolo Gorgoni, uma das 10 pessoas que deram a cara pela campanha "Sou VIH+ e Vísivel".

 

dezanove: Quem é o Paolo?

Paolo Gorgoni: Nunca sei bem o que responder a esta pergunta, mas vou tentar: tenho 36 anos, vivo em Lisboa há sete e sou artista e activista. Vivo com VIH “visivelmente” há muito tempo e considero-me um privilegiado por ter condições que me permitiram tornar público o meu estatuto serológico VIH e estar ainda vivo e saudável.

 

Há quantos anos vives com a infecção por VIH? Como vivenciaste o diagnóstico na tua realidade (falando da tua localidade / país / grupo social)?

 O meu diagnóstico chegou, como um balde de água fria, em 2010. Na altura tinha 23 anos e uma vida de estudante trabalhador em Bolonha, Itália, que é o meu país de origem. Esse momento marcou a minha vida: até então tinha tido quase todas as minhas relações sexuais com preservativo, fazia testes de VIH cada três meses e tinha acabado de receber o resultado, negativo, de um teste efectuado apenas um mês antes, o que significa que a minha infecção era tão recente que não podia ser detectada antes por me encontrar no que se chama “período janela” (as semanas em que o vírus está no corpo mas ainda não é detectado pelos testes). Quando o médico me comunicou a informação, tive uma reacção inesperada: só consegui dizer “foda-se, só tenho 23 anos!”. Por ser uma pessoa homossexual, activista LGBTQIA+, tinha noção que o VIH afecta desproporcionadamente a nossa comunidade, em comparação com a população geral: era como se tivesse assumido, inconscientemente, que só por ter sexo com homens, mais cedo ou mais tarde poderia apanhar o vírus, e que só me restava rezar que acontecesse o mais tarde possível.

 

Como é viver com VIH no século XXI?

Viver com VIH hoje é uma questão controversa. Por um lado, para quem tenha acesso aos tratamentos e aos serviços de saúde, o VIH já não é sentença de morte e, apesar de não ter cura que o elimine do nosso corpo, temos tratamentos que o impedem de reproduzir-se e danificar o organismo, garantindo uma expectativa de vida comparável à de quem não tem o vírus, para além de tornar impossível a transmissão a parceiros mesmo em relações sexuais sem preservativo. [Sobre as desigualdades sociais e falhas dos sistemas que não garantem acesso universal aos tratamentos, seria necessário abrir outro capítulo…]

Por outro lado, o VIH não é uma constipação ou uma gripe sazonal, mas uma condição que se torna crónica e a longo prazo tem as suas consequências. As pessoas com VIH têm um risco acrescido de desenvolver cancro, osteoporose, doenças cardiovasculares, redução das capacidades cognitivas e envelhecimento precoce. Por muito que gostemos de considerar VIH e SIDA problemas do passado, ao menos ao nível clínico, estamos enganados. Inclusive, é raro encontrar equipas clínicas que abordem a nossa saúde de forma integrada, tentando de intervir e antecipar a insurgência de co-morbilidades. Sem contar a discriminação que, até nos próprios serviços de saúde, continuam a existir e a prejudicar o acesso e a qualidade de acompanhamento de pessoas não heterossexuais, não brancas, não cisgénero, que fazem trabalho sexual, com deficiências e/ou marginalizadas de várias formas.

 

Achas que ainda há muita desinformação relativamente ao VIH?

A desinformação acerca de VIH e SIDA é um problema enorme, junta ao estigma que afecta as pessoas que vivem com o vírus. Mas a desinformação não é o único factor que gera comportamentos estigmatizantes e práticas discriminatórias. Há diferença entre não saber e não querer saber, assim como existe um medo compreensível e um medo alimentado pela ideia de que uma suposta superioridade moral afasta do risco de infecção quem não for (e se me dão licença) “bicha, puta, toxicodependente”.

Em 2022, com internet, redes sociais e todo o trabalho de divulgação feito por associações, entidades, serviços, para muitas pessoas é mais fácil que nunca obter informação correcta, clara e completa sobre este assunto. A indiferença culposa (que se alimenta de desinformação, mas não é gerada apenas por ela) da sociedade perante este assunto está certamente ligada à falta de responsabilidade individual perante uma epidemia que atravessa os últimos 40 anos da história contemporânea.

Em outros casos, o medo que mais uma camada de discriminação caia sobre comunidades já oprimidas, reduza a capacidade de resposta das mesmas. Fazendo apenas um exemplo: a SIDA, nos primeiros anos, era chamada de Peste Gay, ou GRID (Gay Related Immuno-Deficiency), e por esta razão não despertou o interesse de governos e entidades públicas. O legado desta primeira parte da história do vírus faz com que a comunidade LGBTIA+, apesar de ser desproporcionalmente afectada, nem sempre possa ou queira assumir liderança na resposta à epidemia, por medo de reforçar um estereótipo obviamente errado. O resultado é que as primeiras respostas institucionais (e em muitos caso as actuais também) foram tardias e orientadas apenas à população geral, ignorando a especificidade, as necessidades e as reivindicações das comunidades marginalizadas.

O legado desta primeira parte da história do vírus faz com que a comunidade LGBTIA+, apesar de ser desproporcionalmente afectada, nem sempre possa ou queira assumir liderança na resposta à epidemia, por medo de reforçar um estereótipo obviamente errado. O resultado é que as primeiras respostas institucionais (e em muitos caso as actuais também) foram tardias e orientadas apenas à população geral, ignorando a especificidade, as necessidades e as reivindicações das comunidades marginalizadas.

 

O que te levou a participar na campanha “Sou VIH+ e visível”?

Quando decidi participar na campanha “Sou VIH+ e visível”, senti uma felicidade imensa por saber que outras pessoas tinham decidido juntar-se nesta iniciativa dando a cara para lançarmos uma mensagem social clara e importante: o VIH afecta as nossas vidas, mas não as define. Reescrever a narrativa sobre as pessoas com VIH é tão importante quanto lutar para que a resposta à epidemia melhore a outros níveis e noutros aspectos.

Os nossos corpos e as nossas vivências têm valor, e na realização desta campanha, pela primeira vez, senti que isso era reconhecido e respeitado, e que foi criado um ambiente seguro e alegre de partilha e de empoderamento mútuo. O meu trabalho artístico como Paula Lovely, por exemplo, é a demonstração concreta do meu posicionamento: acredito no poder da visibilidade. Penso que não podemos ser apenas corpos que morrem em filmes e séries que falam dos anos 90 e 80, sem nunca actualizarem a ideia que a sociedade tem sobre VIH e SIDA. Somos muitos, somos todos diferentes, e o VIH não nos escolheu com base no nosso género, estilo de vida, origem ou orientação sexual. O VIH não nos tirou o direito a uma vida plena, nem o direito a sermos quem somos sem medo: a infecção é apenas uma infecção. Não é uma falha, não é uma culpa, não é pecado, não nos tira direitos fundamentais, capacidade laboral, sexualidade livre e feliz, fabulosidade, beleza e força.

O VIH não nos tirou o direito a uma vida plena, nem o direito a sermos quem somos sem medo: a infecção é apenas uma infecção. Não é uma falha, não é uma culpa, não é pecado, não nos tira direitos fundamentais, capacidade laboral, sexualidade livre e feliz, fabulosidade, beleza e força.

 

Entrevista de Ricardo Falcato e Marta Pimentel Santos