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Por falar em "Teoria/Ideologia de género"…

Ideologia de Género

Nos últimos anos temos assistido a um crescente debate público sobre a “teoria de género” e “ideologia de género”, dois conceitos que mostram inquietação no seu entendimento, tendo recentemente sido apropriados por um discurso político aliado à moral religiosa que se recusa a reconhecer os conceitos de género e sexo como construções políticas e culturais.

Antes de mais, situemos temporalmente o surgimento destes conceitos, de forma a perceber a sua carga simbólica e o perigo de desinformação que trazem quer ao reconhecimento dos direitos sexuais como direitos humanos tal como do aprofundamento e salubridade das democracias liberais.

A teoria e crítica de género, enquanto matriz académica dos estudos feministas e dos estudos de género, encerra em si a compreensão da desigualdade das relações de género baseadas na diferenciação dos papeis sociais atribuídos aos homens e às mulheres por via das suas diferenças biológicas, das suas características físicas e sexuais. O conceito de género surge então como uma oportunidade de desvelar o sistema de poder e privilégios criados pela divisão social do binarismo de género heteronormativo, procurando o reconhecimento de direitos de igualdade jurídica, de autonomia, visibilidade e auto-determinação da diversidade de género, pela implementação de políticas que assegurem o respeito legal da cidadania sexual e reprodutiva.

Fruto da inclusão da igualdade de género numa agenda política internacional dos direitos humanos (ONU), começam a surgir as primeiras manifestações de resistência e contestação ao termo “gender” por parte da doutrina Católica. Com o intuito de reafirmar o seu poder e autoridade no que toca à ordem social e moral, especificamente no campo da vida sexual e reprodutiva feminina, surge na década de 1990, por via de documentos oficiais da Igreja Católica, o termo “ideologia de género”, como retórica reaccionária ao impacto dos feminismos e visibilidade LGBT nas exigências de direitos políticos e sociais. Através de argumentos pós-apocalípticos na construção do discurso “anti-género”, a doutrina católica parte do pressuposto que a natureza da família está erradicada no papel biológico do homem/pai e da mulher/mãe e que ignorar essas diferenças leva à ameaça da “família natural”, do bem estar das crianças, da sobrevivência da sociedade e de todo o futuro da humanidade.

Através de argumentos pós-apocalípticos na construção do discurso “anti-género”, a doutrina católica parte do pressuposto que a natureza da família está erradicada no papel biológico do homem/pai e da mulher/mãe e que ignorar essas diferenças leva à ameaça da “família natural”, do bem estar das crianças, da sobrevivência da sociedade e de todo o futuro da humanidade. 

Na justaposição às políticas promotoras da igualdade de género, aos direitos reprodutivos das mulheres como o acesso ao aborto em segurança e às tecnologias reprodutivas (PMA), da educação sexual nas escolas e aos direitos das pessoas LGBT, como são o casamento e a homoparentalidade, os movimentos fundamentalistas católicos apoiados por partidos ultra-conservadores de direita e de extrema-direita, acusam os Estados democráticos liberais na criação de legislação propagandista de “ideologia de género”, contribuindo para a corrosão dos valores tradicionais da família, da ameaça à “natureza” feminina, da exposição das crianças ao “perigo homossexual” e à “anulação da natureza humana”.

Resultado desta inquietação, junto ao facto de vivermos em sociedades globais e fortemente mediatizadas, assistimos à escalada internacional dos discursos de ódio e formulações anti-ideologia de género, mostrando o backlash às agendas feministas e aos direitos LGBT já conquistados.

Assistimos à escalada internacional dos discursos de ódio e formulações anti-ideologia de género, mostrando o backlash às agendas feministas e aos direitos LGBT já conquistados.

Recordemos, na Europa, os exemplo da Hungria e da Polónia com a implementação de legislação que revoga as políticas associadas à “ideologia de género” como são a criação de “zonas livres LGBTQ” ou a restrição do acesso ao aborto. No Brasil, o movimento encabeçado por Bolsonaro contra os materiais pedagógicos distribuídos nas escolas para enfrentar a violência e discriminação contra as crianças LGBTQ+, denominando-o de “Kit-Gay”. Na Federação Russa, a resistência contra a corrupção da “Europa Gay” que corrompe os valores de soberania nacional do país. Junto a este discurso anti-género a ameaça dos discursos xenófobos e agendas contra a imigração. Também em Portugal assistimos à convergência anti-“ideologia de género”, alicerçada na promoção de políticas de extrema-direita com o apoio de sectores católicos conservadores, na promoção da desinformação sobre a suposta doutrinação do género nas escolas e da repatologização da homo/transexualidade. Uma postura que desviada do debate académico e dos valores democráticos, vai alimentando o pânico moral de género através da criação de estereótipos que reforçam o machismo, a misoginia, o heterossexismo e a homo/transfobia. O que assistimos nos dias de hoje com os discursos “anti-género”, é a tentativa de repressão das liberdades individuais e a punição sexual “não normativa”. Por meio da promoção da desinformação, dos discursos de ódio e da intolerância, vai-se permitindo o retorno dos caducos valores morais contrários ao bom funcionamento da democracia. Não será demais salientar que, a crítica feminista e a teoria de género, longe de qualquer doutrina, trazem a importante reflexão e denúncia das desigualdades históricas de género que persistem nas nossas sociedades. Tal como o seu maior engajamento com a acção política e cidadã nos permitirá reconhecer o valor da diferença e da diversidade enquanto chavões elementares dos direitos humanos. 


Daniel Santos Morais é mestre em Sociologia pela Universidade de Coimbra. Feminista, LGBTQIA+ e activista pelos Direitos Humanos.
Partilha a sua vida entre Coimbra e Viseu.