Porque não precisamos de um dia do orgulho Hetero
A extravagância colorida das marchas populares, das roupas às vestes, das canções à dança; ou a euforia das celebrações do título do Benfica, do Sporting ou do Porto entre os cachecóis, os cânticos, todo o aparato do palco e os milhares de pessoas que se aglomeram para gritar tão intensamente, o que têm em comum com uma manifestação do Orgulho LGBTQIA+?
Duas coisas que, na verdade, estão interligadas: a extravagância ou a espectacularidade que é própria da cultura; e o colectivo que também da cultura é gerado. Ou seja, é nas expressões culturais que as pessoas se unem e criam um sentimento de coletivo – os benfiquistas, os sportinguistas, os portistas, os da Madragoa, os da Bica, os de Alfama, os homossexuais, os bissexuais, os transexuais – assim como é nos comportamentos de grupo que as pessoas se identificam – num hino de uma marcha ou de um clube, num cachecol, nas roupas, num estilo de penteado, na maquilhagem, etc. ...
Quando se diz que a comunidade LGBTQIA+ é extravagante (até se utiliza a quantidade de siglas do LGBTQIA+ como exemplo disso), está-se a ignorar que foi pela criação de uma expressão cultural, dentro da própria comunidade, que se gerou identidade, união e, por isso, aceitação. Quem é LGBTQIA+ precisou de criar códigos e comportamentos de grupo para ser aceite porque, a dado momento da sociedade, como todos sabemos e reza a história, não o era (e em muitos sítios continua a não ser). E por isso saímos à rua e celebramos a afirmação de um colectivo onde nenhuma pessoa é excluída.
(E esta celebração ganha uma importância singular porque, contrariamente a escolher um clube pelo qual vamos torcer, a sexualidade não se escolhe).
Há quem diga que para haver um dia do orgulho LGBTQIA+, tem de haver um dia do orgulho Hetero. Que o façam e sejam felizes. Mas um orgulho Hetero pressupõe, num mínimo de preconceito, um alívio por não se ser gay - e eu, como muitas pessoas LGBT, durante muito tempo quis sentir esse orgulho. Já o orgulho LGBTQIA+, vem da conquista da aceitação da normalidade. Porque a luta por essa aceitação é dura, envolve a família, o trabalho, a sociedade e a própria cultura em que vivemos que é, predominantemente heterossexual por força da maioria. E quando alguém conquista essa aceitação, é natural que o celebre. Já o heterossexual não tem propiamente algo para celebrar, tal como nenhum clube de futebol celebra quando não conquistou um título.
O orgulho LGBTQIA+, vem da conquista da aceitação da normalidade. Porque a luta por essa aceitação é dura.
É fácil ser heterossexual, é muitas vezes desejável mesmo por quem não o é. É fácil estar no padrão, difícil é remar contra a maré. É fácil não lidar com olhares, comentários, a putativa aceitação ou rejeição dos pares e da família, as consequências profissionais que ainda existem em alguns meios (e já que falamos de futebol, são muitos os jogadores anónimos que ainda se queixam de não se poderem assumir como LGBTQIA+). E por isso, é natural que muitas pessoas que não o são, desejem ser heterossexuais. Difícil é esse caminho de aceitação e é da dificuldade que vem o orgulho. Tal como é da dificuldade dos ensaios de uma marcha e da superação da sua apresentação, ou da dificuldade de um campeonato ou uma liga e da superação de cada jogo até chegar ao fim no 1º lugar do pódio, que vem o orgulho. O que é que o heterossexual superou?
Por isso, não cavemos o fosso do orgulho hétero para não alimentar a batalha de qual a orientação sexual que é melhor. Quando deixarmos de cavalgar essa disputa, estaremos em condições de aceitar a heterossexualidade como igual à homossexualidade, à bissexualidade e a todas as orientações com que as pessoas se identifiquem. E aí, poderemos realmente construir uma sociedade melhor, onde os jovens LGBTQIA+ não tenham uma probabilidade três vezes maior de cometer o suicídio. Onde um jovem trans não sofra como sofre por não se identificar o sexo com que nasceu. Onde uma mulher idosa não sofra pelo que perdeu por não ter crescido numa sociedade onde se pudesse afirmar como lésbica. Onde um jovem adulto possa ser artista e usar o corpo e as noções de género para fazer arte, sem ser rotulado com o que quer que seja. Onde uma mulher adulta possa estar solteira e não ter vida sexual activa sem ser considerada “frígida” ou “falhada”. Onde uma família poliamorosa possa estar junta, ser feliz, ter filhos e ser aceite como tão legítima como qualquer outra família onde haja amor e parceria. Onde um jovem bissexual, como eu, possa crescer sem ser forçado a escolher se é uma coisa ou a outra, sem ter medo de poder vir a ser rejeitado e poder casar com quem ama.
Não precisamos de um dia do orgulho Hetero. Precisamos de celebrar aquilo que alcançamos com o trabalho árduo de quem luta por algo: o título do nosso clube, a marcha do nosso bairro e os direitos conquistados para quem não os tinha. Obrigado a quem lutou para que houvesse um mês do Orgulho LGBTQIA+.
Miguel Partidário