Prémios dezanove: Os melhores e os piores de 2024
A 15ª edição dos Prémios dezanove volta a distinguir o que marcou o ano de 2024. Um conjunto de categorias que assinala pela positiva o que aconteceu de revelante na actualidade no último ano. No entanto, também denunciamos algumas situações graves e desilusões que afectaram o país e o mundo. Aqui ficam registadas as nossas escolhas:
Acontecimento Nacional do Ano
Eleição de Donald Trump
Provavelmente pensámos que não voltaríamos a assistir a um segundo mandato de Donald Trump como presidente dos EUA, sobretudo após a trágica gestão da pandemia de Covid-19 e do assalto ao Capitólio no início de 2021, que muitos classificaram como um golpe de Estado. Mas eis a dramática sequela: o trumpismo reforçou-se, solidificou-se como corrente maioritária no Partido Republicano e elegeu a reversão dos direitos LGBTQIA+ como cavalo de batalha para os próximos quatro anos. As maiorias republicanas na Câmara dos Representantes e no Senado dão ao novo presidente um poder reforçado para avançar com estas políticas. Trump defende o isolacionismo norte-americano no plano internacional, apoia incondicionalmente Israel no conflito do Médio Oriente e tentará forçar um compromisso com Putin para acabar com a guerra na Ucrânia. Não serão anos fáceis nem para os EUA nem para a Europa.
Activista do Ano
Foi um encontro espontâneo, mágico e enternecedor. António Fernandes, octogenário residente no centro do Porto, veio à porta ver passar a marcha do Orgulho da sua cidade. Viu as bandeiras que os participantes levavam e lembrou-se de ir buscar a que tinha em casa, numa demonstração de apoio. A bandeira nacional, tantas vezes usada pela extrema-direita como símbolo de ódio contra as minorias, foi a que o Sr. António ofereceu uma activista que integrava a marcha. Ela retribuiu-lhe com a bandeira do arco-íris, as cores do Orgulho. Ele, comovido, apertou a bandeira no seu peito e essa imagem ficou registada nas objectivas da comunicação social. O apelo do Sr. António contra a solidão e o abandono em que vive é reconhecível nos anseios da comunidade LGBTQIA+. No ano do 25 de Abril, o Orgulho foi mais interseccional.
Iniciativa do Ano
Foi um longo percurso, mas em 2024 o Porto inscreveu o nome de Gisberta e a memória do seu assassínio transfóbico no espaço público da cidade. A ideia começou a ganhar forma em 2020 e, depois de uma petição pública, foi levada a reunião de câmara no ano seguinte. A presidente da Comissão de Toponímia recusou a proposta, declarando que «a pessoa em si nada fez em prol» do Porto. Porém, numa votação posterior, a recomendação acabou por ser aprovada. Ficava-se a aguardar que um novo arruamento fosse construído para se atribuir o nome. Este ano, a menos de 500 metros do local onde a mulher trans foi brutalmente assassinada em 2006, foi finalmente inaugurada a Rua Gisberta Salce Júnior.
Na sua longa-metragem de estreia, Diogo Costa Amarante filma a busca de paixão e afecto de três personagens de diferentes gerações da mesma família, em tentativas inevitavelmente marcadas pela frustração e pela solidão. Da avó Júlia (Valerie Braddell), que não se consegue livrar do espírito do marido já falecido, que tomou o corpo de uma sua companheira do lar; da mãe Fátima (Sandra Faleiro), mulher divorciada que tenta reactivar a sua vida afectiva, seduzindo o vizinho da frente; e do filho Vítor (Carloto Cotta), que se apaixona por um rapaz jovem e belo, mas que lhe escapa entre os dedos e que ele busca incessantemente à noite. O filme foi rodado no Porto e estreou a 7 de Novembro.
Numa simples conversa durante uma entrevista Salvador Sobral - que todas as pessoas em Portugal reconhecem como o vencedor de Portugal na Eurovisão - explicou com toda a naturalidade que era uma pessoa intersexo. E com essa naturalidade quem acompanhou este caso percebeu o que ser intersexo significa:
Este foi um ano especialmente fértil no campo da história LGBTQIA+ em Portugal. António Fernando Cascais já tinha lançado, em 2004, um livro fundador para os estudos queer nacionais, Indisciplinar a Teoria: Estudos Gays, Lésbicos e Queer, que reunia os trabalhos de investigadores em História, Psicologia, Sociologia, Antropologia, Teoria Literária ou Crítica Cultural. Vinte anos depois, aparece agora Dissidências e Resistências Homossexuais no Século XX Português, que propõe um idêntico esforço de reunião de contributos dos principais investigadores na história da homossexualidade em Portugal. Incluem-se neste volume artigos de Ana Clotilde Correia, António João Silva, Bruno Marques, Francisco Molina Artaloytia, Raquel Afonso, Richard Cleminson e do próprio António Fernando Cascais.
Casa Vale Ferreira no Museu de Serralves
Entre Julho e Novembro, os artistas João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira ocuparam a sumptuosa casa cor-de-rosa da Fundação de Serralves, no Porto, com uma exposição antológica do seu trabalho de mais de vinte anos. A sua atenção tem-se orientado para o estigma e preconceito em relação à comunidade LGBTQIA+, para o trabalho sexual ou para o impacto do VIH/SIDA. Em Serralves foi possível ver uma compilação do seu esforço de resgatar a memória queer e reflectir sobre o seu esquecimento e apropriação. A dupla João Pedro e Nuno Alexandre estende-se além da arte. O casal decidiu inaugurar a exposição com o seu próprio casamento, celebrado como um “statement político” no principal museu nacional de arte contemporânea.
Eleição de 50 deputados do Chega para o Parlamento
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Perseguição movida pela Habeas Corpus às pessoas LGBTQIA+ e a passividade do Governo e das autoridades portuguesas
Dupla desilusão, mas com a mesma raiz: o avanço da extrema-direita e a perseguição às pessoas LGBTQIA+ e aos seus direitos. Nas legislativas deste ano, o Chega obteve mais de um milhão de votos e elegeu 50 deputados à Assembleia da República, com um programa eleitoral que define como prioritário o ataque às minorias e ao Estado social. Não fosse já esta política radical o suficiente, o partido de André Ventura tem dado respaldo a grupos extremistas, que incitam abertamente ao ódio e à violência contra as pessoas LGBTQIA+. Este ano, o grupo Habeas Corpus, liderado pelo ex-juiz negacionista da Covid-19 Rui Fonseca e Castro, acossou váries activistas e, em particular, autoras de livros infantis, interrompendo violentamente sessões de apresentação e acções de formação, ameaçando os seus intervenientes. Têm publicado regularmente uma lista de “terroristas LGBTQIA+”, na qual incluem pessoas ligadas ao activismo, da cultura ou da comunicação social (vários elementos do dezanove.pt foram também já visados). Perante estas acções de intimidação, e face aos apelos que têm partido da comunidade, a conduta do governo e das autoridades policiais tem-se pautado pela inoperância e pela desconsideração da gravidade e do perigo que estes ataques representam.