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Existem dias em que com muita esperança, talvez presunção, penso "já passou", que, enquanto adulto, está tudo bem, que não voltarei a sentir isolamento, que não vou olhar o mundo e pensar que está contra mim e que já fiz o percurso que tinha de ser feito. Está mais perto, mas sair do armário, como lhe chamam, faz apenas parte do início da caminhada.

 

 

Há muito que queria escrever este post e dizia-me não ter as palavras certas, quando na realidade não existem palavras certas para dizer que enquanto crescia, algumas pessoas, motivadas pelo que outras lhes incutiram como sendo certo, me fizeram sentir errado, sujo, mau, feio, vergonha. Sem que ainda soubesse àquilo a que se referiam ou quem era. 

Amigos que se mantêm próximos não têm memória. Quem me infligiu dor física e psicológica talvez também não. Eu sim, e agora estou em condições de partilhá-la. É um exercício duro deixar-me guiar pelas memórias que não quero lembrar e sentimentos que não quero sentir, mas é isso que faço convosco hoje. Porque este blog é sobre mim, as coisas boas e más, e o que aprendo com elas. Porque este blog, seja de que forma for, é para outros lerem.

O bullying começou na mesma altura em que me apercebi que era diferente, tinha eu uns oito anos. Diferente, aos oito, era tudo o que sabia. Não conhecia palavras para associar à diferença. Não sabia que parte da minha família e comunidade me viam como algo de mau, a precisar de tratamento ou de morrer, como cheguei a ouvir.

Não sabia que parte da minha família e comunidade me viam como algo de mau, a precisar de tratamento ou de morrer, como cheguei a ouvir.

Antes de sequer ousar expor o que pulsava cá dentro tudo mudou. O meu melhor amigo passou a chamar-me várias coisas menos Leonardo. Paneleiro e "escabaçado" - seja lá isto o que for - eram as mais constantes. Não sabia o que era, mas já mo apontavam, pejorativamente. Ser isso, "padecer" disso, era mau. Essa palavra, nova no meu vocabulário, tinha muito poder - para todos menos para mim: fazia com que me batessem nos intervalos, com que não pudesse usar o computador nas aulas de informática e que cascas de fruta voassem para a minha sopa. 

Lembro-me dum episódio em particular, estávamos no intervalo, enquanto um colega me agarrava, outro apertava o pescoço e outro dava pontapés. Gritei o mais alto que pude olhando para alguém responsável, que me devolvia o olhar sem nada fazer. Talvez porque "éramos só crianças a brincar". Aí entendi que quem me poderia proteger não o ia fazer, que estava por minha conta e passei a ter medo do que era o meu lugar favorito, a escola. 

A vergonha e o medo manifestavam-se, além das lágrimas, numa dor de cabeça, acompanhada de um formigueiro. Não tinha apetite e implorava que me deixassem ficar em casa. A minha mãe esforçou-se para entender. Como é que alguém que sempre quis estar na fila da frente, com excelentes a tudo e amigos de repente não quer sair de casa? Também ao psicólogo senti que precisava mentir. Quando contei parte do que acontecia foi pior. Mentir deu-me um conceito ridículo de protecção: calar para apanhar menos.

Éramos, sim, crianças. Mas há algo que todos precisamos compreender: as crianças são uma tábua rasa. Se o que lá for escrito for mau, elas irão agir de acordo com isso. Se lhes ensinam violência elas vão perpetuá-la. Se lhes ensinam a odiar é ódio que vão sentir. Da mesma forma que, quando envolvidas em amor e respeito, o reproduzem infinitamente, da forma bonita como só elas sabem.

Mas há algo que todos precisamos compreender: as crianças são uma tábua rasa. Se o que lá for escrito for mau, elas irão agir de acordo com isso. Se lhes ensinam violência elas vão perpetuá-la. Se lhes ensinam a odiar é ódio que vão sentir.

No 5º ano, como íamos para escolas diferentes, achei que tudo ia mudar. Os primeiros meses foram fantásticos, conhecimentos e amigos novos, vida nova. Mas claro que "isto" me iria sempre apanhar, fosse como fosse. Uma professora para me mandar calar, a mim e a um amigo, disse para pararmos de estar aos beijinhos. Ainda hoje não entendo. Só beijei um rapaz pela primeira vez aos 18. Num meio pequeno, numa escola, não importa que não fosse verdade. Comentou-se fora da sala e tudo mudou novamente, durante anos. Estava marcado por uma suposta demonstração de afecto. 

Achei que a história se iria embora, como as notícias vão, mas não. Os dias de medo regressaram, mas agora ia lidar com muitos mais, de todas as idades, numa escola grande, onde achavam por bem bater e insultar por algo que ainda não compreendia. As dores de cabeça e o formigueiro voltaram. Tomei as medidas possíveis: sentar-me no início do autocarro - os machos curiosamente preferem a parte de trás; deixei de entrar na escola pela entrada principal e ia sempre por detrás dos pavilhões. Havia menos pessoas, parecia mais seguro. Parei de comer na cantina, situações menos boas ocorriam lá. Isso não foi suficiente. Durante anos que não foi. 

Na escola faziam sempre festas no final do período e ocasiões especiais. Numa dessas, atiraram-me papéis durante todo o evento. Deixei de ir às festas. Num dos cortejos de carnaval atiraram-me pedras. Deixei de estar presente. Os intervalos eram oportunos para essas coisas, então comecei a ficar dentro dos pavilhões.

Num dos cortejos de carnaval atiraram-me pedras.

Comecei também a riscar os dias num calendário que guardava na carteira. Contava as faltas que podia dar, os dias piores, os feriados, os fins de semana. Sozinho.

Acho que até aos 12 todas as manhãs acordava na expectactiva de ter mudado, mas bastava-me chegar à escola para olhar para um rapaz e saber que era um olhar diferente. Achei que não podia ser amado se fosse assim. Cheguei ao ponto de rezar para que se fosse embora, mesmo já não acreditando num deus que cria alguém de uma forma e depois castiga. Não foi embora, não podia, nem tinha.

Há um outro episódio antes do secundário que me marcou. Abriu um bar na terriola e fui sair à noite pela primeira vez com os meus amigos. Um rapaz "popular" agarrou-me, apalpou-me e disse-me coisas terríveis. Hoje, embora racionalmente saiba que está tudo bem, sair à noite e pensar em sair causam-me ansiedade.

As aulas de educação física eram as piores. É cliché, mas era péssimo em futebol. Os rapazes tinham que jogar futebol. Um rapaz que preferisse jogar volley não podia, uma rapariga que quisesse jogar futebol podia. O professor que tive durante anos, assumidamente homofóbico, tinha uma metodologia de ensino peculiar: "joguem futebol"; beliscar as raparigas, olhar-lhes para o rabo e conversar com os favoritos. Havia uma certa discriminação na avaliação. Estudava e sabia as matérias, tanto para história como para educação física. Curiosamente, a história tinha 19 e a educação física chegar à positiva era complicado. Na parte prática, uma rapariga pior tinha 15, eu nunca mais do que 14.

É cliché, mas era péssimo em futebol.

Aos 18 anos, a fazer algo que de forma simples se chama terapia disse pela primeira vez que era gay. A sessão demorou 3 horas porque só após chorar durante este tempo, depois de me ter sido servido um gin e um whiskey - sim isto aconteceu mesmo - é que consegui abanar a cabeça. Demorei tanto tempo porque achava que me iria querer suicidar, que não aguentaria a vergonha se alguém soubesse. Em vez disso fui recebido com um sorriso e um abraço. 

Aos 18 anos, a fazer algo que de forma simples se chama terapia disse pela primeira vez que era gay.

Não sei bem o que tem de ser feito, mas o problema é muito profundo. As "vítimas" nem sempre denunciam, e por vezes suicidam-se. Na ausência de uma denúncia por parte da vítima, poderiam ser os colegas. Os colegas por vezes "não vêem", não têm de ser homofóbicos, racistas e afins, podem só ter medo. É difícil ir contra os estabelecido. Resta-nos os professores, mas esses conseguem ser piores. Parece popularucho ou demasiado português dizer isto, mas é verdade. 
Quando via pessoas na minha situação e não conseguia fazer nada, sentia-me impotente. Por vezes até tentava gozar, acho que era homofóbico. Falei há uns tempos com um colega que passou algo semelhante na escola e lamentei não ter sido capaz de intervir. Ele disse que não importava e até me confessou que fui das primeiras "crushes" dele. Saber isso foi emocionante para mim. Numa altura em que eu tinha repulsa de mim, havia alguém que reparava. Há sempre alguém. 
Nem sempre estive consciente, mas hoje sei que gosto muito de mim. As feridas são quase cicatrizes porque tenho vindo a entender que não seria quem sou sem um passado. E, ser gay não faz de mim menos homem nem é tudo o que sou. Até as emoções menos boas levaram-me a olhar as coisas com outros olhos e aguçou-me o sentido de humor. A honestidade só trouxe vantagens. Não só me permitiu manter as minhas amizades, como possibilitou que as mesmas se fortalecessem e multiplicassem. Permitiu-me amar e ser amado, construir algo com alguém. Permitiu-me ser livre.

 

As feridas são quase cicatrizes porque tenho vindo a entender que não seria quem sou sem um passado. E, ser gay não faz de mim menos homem nem é tudo o que sou. 

A vida é cada vez mais plena porque tenho deixado que permaneça em mim um  "e se?", porque me deixei guiar pela imaginação, por curiosidade relativamente a outras vidas. Espero que quem leia, independentemente da vida, cor, peso, ou orientação sexual, se pergunte, com vista ao futuro "e se?" e veja todas as combinações possíveis. 
 
 
Leonardo Rodrigues, autor do blog "Leonismos".
 

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