Quando política e religião se entrelaçam num êxtase diabólico
Correu nos média a notícia sobre 100 homossexuais detidos na República da Chechénia e, pelo menos, três mortos devido aos ferimentos e torturas. Fico perplexo que alguém ainda esteja surpreendido. Tentaremos perceber o que se passa por trás desta barbaridade.
A República da Chechénia é uma das sete repúblicas/regiões da Rússia predominantemente muçulmanas. Nesta república, como em todo o território russo, na minha opinião, estão decorrer dois processos intercomplementares e paralelos. Quando a política e a religião se entrelaçam num êxtase diabólico.
O primeiro processo está relacionado com o reforço contínuo da religião na Rússia que se tem constatado nos últimos anos. A religião começa a predominar, com a sua opinião, nos média russos, como foi o exemplo do caso da peça Jesus Cristo Superstar que deveria decorrer na cidade de Omsk e onde activistas ortodoxos exigiam a sua proibição, uma vez que esta peça ofendia os seus sentimentos religiosos. Outro exemplo, o das centenas de casos de expropriação da propriedade privada e pública a favor da igreja. Esses processos tocam não apenas a igreja ortodoxa como também o lado das mesquitas.
O outro processo paralelo é a transformação da conjuntura política russa e as ambições pessoais do presidente da República da Chechénia, Ramzan Kadirov, que tem vindo a demonstrar a intenção de ocupar o lugar do Presidente Putin num futuro próximo. Apenas com o consentimento ou com uma ordem superior é possível fazer a operação agora noticiada. Uma operação sem precedentes naquela república. Entre os cem cidadãos presos, incluem-se pessoas do muftiato checheno, pessoas conhecidas e poderosas que são próximas do chefe da República, e incluem-se também dois apresentadores de televisão. Foi exactamente na região chechena que teve origem a polémica lei que permite a violência doméstica uma vez por ano.
Apenas com o consentimento ou com uma ordem superior é possível fazer a operação agora noticiada. Uma operação sem precedentes naquela república
Recentemente a partir desta região apareceu mais uma proposta para a discussão pública: cobrir as cabeças de todas as mulheres na Rússia com um véu. Obviamente que a Rússia Central rejeitará esta proposta, mas o precedente para a abertura da discussão sobre as leis discriminatórias já está feito. Possivelmente, num futuro próximo aparecerá uma outra proposta para aplicar esta mesma lei mas a nível regional. Recordo que há apenas 10 anos, nas ruas da capital chechena, as mulheres andavam com cabeças destapadas, e que hoje em dia a mulher é moralmente obrigada a vestir roupas de manga comprida, saias até ao tornozelo e cobrir a cabeça reafirmando a sua afiliação religiosa. Caso contrário, alguém poderá cuspir na sua direcção ou insultá-la. Por outro lado, a necessidade da Rússia afirmar a sua oposição política perante o Ocidente provocou o aparecimento da lei contra propaganda homossexual, levantando consigo ondas de ataques à comunidade LGBT, o que por sua vez vem actualmente ao encontro de qualquer sociedade muçulmana.
Algumas práticas homossexuais são excepcionalmente toleradas nestas sociedades quando praticadas com rapazes muito jovens que desempenham papeis femininos. De resto são as sociedades claramente homofóbicas. Neste contexto, faz todo o sentido, a afirmação de Ali Karimov, porta-voz do presidente checheno: “É impossível perseguir aqueles que não existem”. Os homossexuais nas regiões do Cáucaso, com sorte, sobrevivem até à maioridade, mas muitas vezes são mortos pela mão dos seus próprios familiares para não manchar a honra da família.
Os homossexuais nas regiões do Cáucaso, com sorte, sobrevivem até à maioridade, mas muitas vezes são mortos pela mão dos seus próprios familiares para não manchar a honra da família
A defensora de direitos humanos, Heda Saratova, membro de Conselho de Direitos Humanos da Chechénia, afirmou durante uma entrevista à rádio Govorit Moskva que os órgãos de segurança pública e “todo o sistema judicial” da república “irá tratar com entendimento” o assassinato de um gay pelos seus familiares e que ela própria “nem sequer iria aceitar” uma queixa sobre um crime desses.
É um inferno em que o diabo pode vestir a pele até de defensora de direitos humanos! Por outras palavras, os homossexuais na República da Chechénia foram entregues a si próprios, cada um por si. E, como era de esperar, já começou uma onda migratória de homossexuais daquela região. Os utilizadores de redes sociais, em pânico, estão a sair dos grupos temáticos fechados ou apagam os seus perfis. No entanto, alguns, arriscando a sua vida, tentam avisar outros. Naturalmente, surgem várias questões: por causa das ambições pessoais e pela afirmação política, qual será o próximo passo do Ramzan Kadirov? Apedrejamentos públicos e a introdução da sharia? Organização de “campos de concentração” para os LGBT? Qual será a próxima fasquia?
Recentemente o presidente da Turquia, Recep Erdogan, afirmou: «O termo “Islão moderado” é um termo ofensivo – Islão é o Islão”. Para o bem das sociedades ocidentais, onde, nas últimas décadas, as comunidades homossexuais têm vindo a conquistar mais liberdade e direitos, esperemos que não seja verdade.
Artigo de opinião de Alexandre Iourtchenko