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Quantas vezes matarão Gisberta?

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Definitivamente, o ano de 2006 foi, para mim, um ano terrível. O ano em que perdi dez quilos em poucos meses, como denuncia, para quem me conhece, a foto que acompanha este texto, tirada na Marcha de Lisboa desse ano. Um ano de morte. A morte simbólica da minha vivência – até então sem “contraditório” – de uma cidade do Porto feita apenas de afectos e generosidade; o desaparecimento da minha mãe após demasiado tempo de sofrimento, falecida poucos meses depois dos factos que motivam este artigo e de quem me encontrava a cuidar praticamente a tempo inteiro quando soou o primeiro alarme de que algo pavoroso tinha acontecido num prédio inacabado da Invicta, às mãos de um grupo de catorze rapazes com idades entre os 12 e os 16 anos. Cada um deles, diga-se, simultaneamente algoz e vítima de maus-tratos na infância, a confirmar que a linguagem de violência é muitas vezes de novo reproduzida porque a conheceu na pele e nunca conheceu outra.

Escrevo na véspera desse dia, 22 de Fevereiro, em que há dez anos atrás o corpo de uma pessoa – Gisberta Salce Júnior, submetida a três dias de intolerável tortura e sevícias sexuais antes de ser queimada e atirada a um poço amarrada a um barrote – foi encontrado no fundo de um poço. E sinto a mesma raiva, mas incredulidade… tal como então… não.

Porque esse sentimento de surrealidade, só o pôde sentir quem não conhecia o país onde vivíamos, que é o mesmo no qual, em grande medida, continuamos a viver. Não o sentiu quem conhecia a tragédia do chamado "sistema de protecção de menores", dos armazéns de acumulação de crianças retiradas às famílias para sua protecção à mistura com jovens sujeitos a medidas tutelares educativas, ou em que metade das crianças institucionalizadas se encontrava – como hoje – entregue a instituições da igreja católica financiadas com dinheiros públicos da mesma Segurança Social que não tem dinheiro para assumir a responsabilidade directa sobre todas as crianças institucionalizadas.

Só ficou incrédulo quem não sabia que o caso Casa Pia – que no início dessa década tantas forças conservadoras aproveitaram para tentar destruir o emergente movimento LGBT com a abusiva associação entre homossexualidade e abuso sexual de menores – era e é apenas a ponta do gigantesco icebergue dos maus tratos e abusos infligidos a crianças em Portugal, maioritariamente no seio das sacrossantas e heterossexuais “famílias tradicionais”.

Só ficou espantado quem vivia na ignorância do estigma, da ignorância, quando não do ódio, que ainda hoje, neste País que não gosta de se ver ao espelho, tornam em alvo de várias formas de violência as pessoas seropositivxs, ou imigrantes, ou toxicodependentes, ou trabalhadorxs do sexo, ou pobres e sem-abrigo… – ou várias destas condições, ou todas em simultâneo e mais alguma, como no caso de Gisberta – mulher e transexual, dois dos mais comuns factores mundiais a determinarem mortes e demais consequências violentas. Na sua excepcionalidade, este era um caso que só expunha o país que tínhamos, logo, discutivelmente excepcional.

Seria de esperar que outras pessoas que sobrevivem diariamente ao mesmo tipo de mecanismos de exclusão, discriminação, agressão – por exemplo, a generalidade das pessoas homossexuais, em particular as que não vivem em meios privilegiados – o compreendessem melhor. Verificamos o contrário com um mero olhar, hoje, às páginas de encontros sexuais entre homens, nas quais o selectivo “engate” parece justificar (justificará?) os discursos racistas, normalizantes, serofóbicos, agistas, entre outros preconceitos de uma dominante cultura da “masculinidade” (leia-se antes sexista, transfóbica, de homofobia internalizada, machista e heterosexista). Uma “cultura” que não faz menos do que agredir e excluir a diversidade, a totalidade de quem não vive ou se representa totalmente conforme as normas sexuais ou de género que historicamente nos oprimem a todxs e que as sociedades capitalistas contemporâneas perpetuam por novos meios. Sirva-nos de consolo (servirá?) que o mesmo se passa com outros grupos sociais excluídos, quantas vezes os primeiros a reproduzir sobre xs demais os mecanismos da sua própria discriminação e a confundir xs companheirxs de infortúnio com o inimigo. Algozes de nós mesmxs…

Mas verificamos o mesmo numa espécie de “activismo asséptico" que tende, ainda hoje, a apresentar as pessoas LGBT e os seus desejos e modos de vida como cópia invertida e de “modelo único” do modelo heterossexista, para aceitabilidade e consumo da maioria hetero, e a preterir sempre as mesmas minorias das minorias – as pessoas mais vulneráveis e excluídas – em nome da conquista de direitos imediatos para maiorias ou, simplesmente, para xs mais privilegiadxs entre xs próprixs excluídos. Para o que há que, naturalmente, limpar e apagar as mesmas “margens” de sempre: para essas formas compartimentadas de pensar e intervir, realidades como a de Gisberta ficam mal no retrato que se quer perfeito.

O seguinte exercício poderia ser com o exemplo de um homem heterossexual. Mas olhemos para nós mesmxs. Especulemos sobre o que teria acontecido se aqueles catorze rapazes não tivessem torturado, violado e assassinado Gisberta, mas sim um homem gay, e já agora alguém que não acumulasse outros factores para discriminação. Teriam as vigílias de protesto reunido uma mera vintena, trintena de pessoas? Teriam chamadas associações "LGBT" feito simples comunicados de imprensa, a conta-gotas, e satisfeito aí a sua urgência em intervir publicamente sobre o caso, como se este tratasse de apenas “mais uma” situação de discriminação e não do homicídio de uma pessoa em condições atrozes? Teriam ignorado ou questionado – até já não ser possível – a natureza de “crime de ódio” daquele acto ou oculto a “homofobia” como seu fundamento primeiro?

 

“Pobres miúdos”

Voltemos ao domínio do real défice de indignação, que não foi apenas o de um País sobressaltado em que um “pobres miúdos” quase conseguiu silenciar a indignação pela vida da pessoa que eles mataram, mas que foi, inicialmente, também um défice de reacção à altura do próprio movimento e daquilo a que chamamos, por desejo de sentimento colectivo, “comunidade”. À realidade em que, assim como somente quatro, cinco dias após o crime as notícias sobre Gisberta se tinham evaporado quase por completo dos meios de comunicação, a causa das pessoas trans foi quase sempre passada para segundo plano e silenciada desde o início do dito movimento LGBT em nome de uma lógica de precedência das reivindicações maioritárias ou do que era considerado “poder passar” ou mais urgente em termos legislativos. Já bem depois do crime, recordo-me, por exemplo, de ser tão urgente a reivindicação do matrimónio igualitário que, para alguns sectores, justificava tentativas sucessivas de resumir ao tema toda a agenda LGBT expressa no Manifesto da Marcha do Orgulho de Lisboa, calando todos os outros. Mais urgente para quem. Para Gisberta?

Voltemos à realidade em que se não fosse a insistência teimosa e solitária – “histérica”, escreveu-se na altura – de um punhado de pessoas que não se calaram, que convocaram internacionalmente uma acção global de protesto para pressionar os ‘media’ que ignoravam comunicado atrás de comunicado e as autoridades nacionais que não reagiam, esse silêncio se teria imposto e permanecido, e nunca se teriam Conhecido pormenores do crime que estiveram em vias de serem ocultados. Só se veio a saber a conta-gotas e devido a essa pressão permanente, que além de morta, Gisberta tinha sido torturada e alvo de sevícias sexuais. Abundavam as notícias erróneas sobre a autópsia de Gisberta, algumas com considerações impossíveis, como a de que não tinha sido possível concluir se tinha morrido por afogamento. Por “punhado de pessoas” refiro-me às primeiras activistas trans de que me recordo (Jó Bernardo, fundadora da primeira associação trans, a @t. – associação para o estudo e defesa do direito à identidade de género –, na qual também participou Lara Crespo, do actual Grupo Transexual Portugal) e ao movimento Panteras Rosa (ao qual se ligou, na altura Stef, activista trans masculino de origem belga que teve também, e mantém, grande peso nas posições que assumimos).

Regressemos também à realidade em que, assim como Gisberta foi resumida mediaticamente uma e outra vez [1] a “um sem-abrigo”, depois a “um travesti”, depois “ao transexual Gisberto”, e finalmente, por tanto comentador de serviço, a um/a "sem-abrigo, seropositivo/a, toxicodependente, imigrante brasileiro/a, tuberculosa/a” – nunca uma pessoa, com uma vida humana, um rosto humano… – tão acumulador/a de desigualdades que teria cavado as condições da sua própria morte ou morrido por si “mais tarde ou mais cedo”… também no movimento LGBT houve quem insistisse (a ILGA Portugal, concretamente) que a motivação do crime era homofóbica – pois “o conceito de transfobia ninguém entenderia” e, assim como assim, os rapazes autores do crime não sabiam a diferença. Veremos quantos meios de comunicação insistem amanhã em voltar a trocar o pronome de género a Gisberta, e assim a voltarão a matar, como se morrer uma vez não bastasse. Ainda alguns, certa e infelizmente. Tal como reafirmarão o que ficou vergonhosamente para a memória colectiva em detrimento de Justiça, que de branda, não tendo sido judicial, pelo menos poderia ter sido pública: a ideia finalmente transmitida de que Gisberta teria sido morta pela água que a afogou, e não por quem a atirou, incapacitada e amarrada, ainda viva e pedindo ajuda, para dentro do poço.

Recordemos também o contexto concreto em que, mesmo perante as denúncias públicas dos maus-tratos e abandono diurno que sofriam as crianças e os jovens institucionalizados nas Oficinas de São José (instituição católica que albergava a maioria dos autores do homicídio de Gisberta), a mesma associação defendeu que a igreja não devia ser interpelada. Posição que não se alterou, a ponto de ser a única associação que não participou nas vigílias por Gisberta, sequer quando um (ainda hoje) alto responsável da ICAR – o padre Lino Maia – declarou publicamente que um dos jovens sofrera abusos sexuais o que seria “circunstância atenuante”, deixando no ar a vergonhosa sugestão – há temas em que a sugestão basta – de que, afinal, Gisberta – e não quem a violou e matou – seria uma abusadora.

Falemos ainda do mundo real em que, assim como em vários momentos da vida da Marcha do Orgulho de Lisboa representantes das associações mais institucionais – tendência inaugurada pela Opus Gay logo no segundo ano do evento – defenderam que o “folclore” (leia-se, as pessoas trans, as pessoas travestidas, quem sabe as efeminações...) deviam ser afastado do evento por causa da "imagem", bem mais recentemente as Panteras Rosa passaram anos a defender quase sozinhas, depois gradualmente acompanhadas – e só muito recentemente o movimento LGBT o defende a uma só voz – a necessidade de despatologizar as identidades trans, à semelhança do que ocorrera mais de trinta anos antes com a homossexualidade. Proposta “insana”, disseram-nos então, por acreditarmos que as pessoas trans tinham direito a voz própria, autodefinição e autodeterminação, em detrimento do transfóbico e autoritário poder médico que sobre elas se exercia – e ainda exerce, embora ocorram lentamente evoluções também neste campo – reduzindo-as à condição de “doentes mentais”. Um processo demasiado lento que nem a memória do crime contra Gisberta acelerou.

 

Copo meio cheio ou meio vazio?

Queremos pessoas vivas e integralmente respeitadas. Queremos Gisbertas vivas, não queremos mártires. Mas é inegável que este caso deu origem à Marcha LGBT do Porto. Propulsionou uma nova visibilidade das questões da identidade de género, das realidades trans, porém a invisibilização e a incompreensão continuam, na sociedade e no movimento. Mudou decisivamente uma boa parte da abordagem mediática ao tema, e no entanto, amanhã teremos de ver Gisberta ser, de novo, “morta duas vezes" ao contarmos quantos meios de comunicação social ainda insistirão, tantos anos depois, no misgendered “Gisberto". Foi determinante para incluir a “identidade de género”, junto com a “orientação sexual” na última revisão do Código Penal como agravantes de crimes de ódio, tal como o foi para que finalmente se aprovasse em Portugal uma “Lei de Identidade de Género” que permitisse às pessoas trans alterarem nome e género nos documentos de identidade sem necessidade de cirurgia ou de processar o Estado. Mas, infelizmente (e esperamos que por pouco tempo), essa Lei é ainda patologizante e faz depender essa possibilidade do aval médico. Nunca uma associação mais institucional levou a cabo uma campanha pública – como a histórica "Não façam do 13 um 31", com que a ILGA Portugal iniciou o caminho para a inclusão no Artº 13º da Constituição da República – no sentido da inscrição constitucional da “Identidade de Género” como outro motivo de não-discriminação. Continua a não haver investimento público na Educação contra a transfobia, ou em medidas concretas que acabem com a discriminação sistemática das pessoas trans no acesso ao trabalho ou aos cuidados de saúde… poderíamos continuar… temos até algum activismo trans – igualmente “asséptico”, mas felizmente minoritário – que apaga outras pessoas trans para não estragar o retrato desejável (para quem?) das pessoas trans “aceitáveis” numa sociedade estruturalmente transfóbica – que “engole” com maior facilidade uma personagem de Eurovisão (Conchita), que pessoas trans reais, muito menos se forem também seropositivas, imigrantes, trabalhadoras sexuais, seropositivas…

Apesar de tudo, a realidade crua e dura não é apenas aquela em que o “caso Gisberta” “mudou muita coisa”: continua também a ser a das mulheres trans amigas de Gisberta com quem comuniquei ainda hoje e que reafirmam que “sempre houve e continua a haver muitas Gisbertas, só não foram alvo da mesma atenção”, ou que nas suas vidas, na maior parte dos aspectos da maior parte das vidas de pessoas trans, “nada mudou”.

 

Geração Gisberta

O que de mais precioso tem efectivamente mudado e evoluído em Portugal, com a marca inegável da violência que se abateu sobre Gisberta em 2006, mas sendo também em si uma marca do tempo de vida já percorrido pelo movimento LGBT em Portugal, é o activismo trans. Não sou eu que o digo. São xs activistas trans da altura. São jovens activistas trans de dezanove, vinte anos, que hoje começam a tomar o seu lugar e voz próprios, com novas possibilidades, noções e perspectivas. É o “bloco trans” auto organizado que abriu pela primeira vez a Marcha do Orgulho de Lisboa no ano passado. É a intervenção pioneira, porque em nome próprio, da associação Acção Pela Identidade (A.P.I., criada em 2015) sobre o tema da intersexualidade. É até um activismo queer, e mesmo LGBT, mais aberto, mais consciente, mais inclusivo do que aquele que fizemos no passado, no qual deposito muita esperança.

Muitas pessoas apelidarão este texto de acusatório e injusto. Dirão que vai buscar diferenças passadas (já alheias a estas novas gerações activistas), ou que é um reflexo das habituais – como se diz – “guerras de protagonismos” entre associações que “não servem para nada” – dizem normalmente as mesmas pessoas, ignorando (de ignorar, ignorância) o trabalho visível e o invisível de tantxs activistas que sim, tem mudado indirecta e directamente a vida de muitas pessoas para melhor, produzindo mudança e consciência mesmo quando não arranha profundamente os fundamentos desta sociedade de desigualdade estrutural.

Eu penso que injusto seria não contar a história como ela foi ou contá-la como ela não foi (tentativas não faltam, não faltarão, certamente). Injusto seria generalizar e dizer que todxs xs activistas e colectivos reagiram da mesma forma ou se comportaram de forma igual. Que não houve, com distintos ritmos, diferentes sectores a evoluir, a começar a entender, a alterar discursos, práticas, prioridades. Houve, sim, e felizmente acabou por ser a maior parte do movimento LGB, finalmente um pouco mais T. Mas um movimento que não conhece a sua própria história, que não a conta com nomes, pessoas e sem meias palavras, está condenado à superficialidade e a repetir os mesmos erros. Perspectivas, opiniões, olhares diferentes, haverá sempre.

Para mim, o crime contra Gisberta Salce Júnior marcou o momento em que o movimento "LGBT" – no seu conjunto – se descobriu menos “T” do que se pensava, e se revelou simultaneamente inapto para reagir como era necessário. Não se pense por um só momento que me excluo deste “conjunto”, ou ao colectivo no qual me mantenho activo. Também as Panteras Rosa cometeram erros. O nosso primeiro comunicado caiu em armadilhas lançada pelas notícias disponíveis, nomeadamente a dO “travesti”. Éramos superficiais na solidariedade que então expressávamos com a causa trans, apesar de já então participarem pessoas trans nas Panteras, o que não nos impedia de favorecer sempre, mais não fosse por instinto e formação feminista, os grupos mais silenciados dentro da comunidade sempre que estes se expressavam no movimento: as pessoas trans, as mulheres lésbicas, as pessoas bissexuais… a verdade é que nos fomos corrigindo, porque tínhamos uma predisposição e capacidade de debate político, uma abertura que aproximou do colectivo, antes deste crime ou por causa dele, pessoas trans que foram absolutamente marcantes, incluindo para a maneira como fomos, finalmente, capazes de reagir ao crime do Porto.

 

Para que serve um movimento?

Dúvidas e dificuldades tivemos todxs com este assassinato. A urgência em conseguir fotos de Gisberta, que lhe atribuíssem um rosto para combater a desumanização em curso, e que finalmente conseguimos através da sua família. A necessidade de insistir permanentemente na distinção entre orientação sexual e identidade de género sem nos confundirmos com as posições de quem advogava que o movimento “homossexual” não devia incluir as pessoas trans, ou com os médicos para os quais todas as pessoas transexuais eram forçosamente heterossexuais. A necessidade de diversificar e completar as noções sobre as pessoas trans: explicar a jornalistas incrédulos, quando não a trans femininas, que sim, também havia pessoas trans masculinas, ou que não, nem todas eram “transexuais” e tinham os referentes binários “homem” OU “mulher” por referência. Como não reduzir a pessoa Gisberta ao conjunto das suas exclusões, sem deixar de as mencionar. Como exigir justiça e o reconhecimento de um assassinato sem embarcar no oportunismo de um CDS-PP que aproveitava o caso para reivindicar a “solução” milagreira do reduzir da idade de responsabilização penal? Como explicar o grau de violência sofrido pelas pessoas trans sem "vitimizar"…? Todxs tivemos, na verdade, que aprender e mudar. Mas há momentos na história de um movimento em que só há um momento para escolher arrepiar caminhos e reagir na hora certa, tomar partido, e só quem o faz se torna decisivo.

Fui trazido ao mundo em 1973 pela pessoa que, malgrado uma primeira reacção homofóbica quando saí do armário, foi quem me ensinou o significado de “solidariedade” – a mãe que perdi para um cancro no mesmo ano em que perdemos Gisberta. Cresci num universo sem homossexuais ou trans – apenas “paneleiros” e “travestis” –, sem associações LGBT, grupos queer ou sequer Internet – visibilidade ou auto representação zero. Tinha nove anos de idade quando a homossexualidade deixou de ser criminalizada (com penas de prisão) em Portugal.

Sei o que andámos, e a importância da totalidade do movimento que hoje temos, na sua diversidade e nas suas diferenças (as mais relevantes de conteúdo, não de carácter), mas sei igualmente quanto desse caminho foram tropeções. Ainda hoje tenho para mim que o activismo que merece a pena é aquele que não reescreve nem nega a sua história, nem os seus próprios erros. É o activismo de pensamento independente, desinteressado e altruísta que não procura visibilidade pessoal mais do que aquela a que obriga o “alguém ter de dar a cara”, de preferência de forma partilhada, nem busca – por isso mesmo não tem – benefícios pessoais outros que os do bem comum. Finalmente, o activismo empenhado em questionar os fundamentos mais profundos da injustiça social, para além das caixinhas compartimentadas desta ou daquela discriminação isoladamente, e aquele que guarda o instinto de reconhecer a injustiça e o saber, sem se substituir à voz própria de ninguém ou querer sentir as suas dores, colocar-se no lugar dx outrx e ser o seu mais intransigente aliadx. Durante anos a fio, a cada debate do texto do Manifesto da Marcha do Orgulho de Lisboa, ouvi o argumento recorrente – e nada solidário – de que outras temáticas, direitos e discriminações (como racismo, defesa dos serviços públicos, a defesa dos direitos das pessoas toxicodependentes ou de quem exerce trabalho sexual, a defesa dos direitos das mulheres ou a luta por uma Segurança Social, Educação ou sistema de Saúde públicos, entre muitos outros) “não eram temáticas LGBT” – numa lógica pela qual ser LGBT exclui ser qualquer outra coisa. Penso sempre no mesmo tipo de afirmações que relativizam quem é sujeito digno de ser “portador de direitos” quando ouço alguém a justificar um acto de guerra – ocupar ou bombardear uma Síria, um Iraque, Afeganistão, Palestina… – porque "eles" (nós não, credo, até esquecemos que o Porto não fica em Gaza, se for preciso!) são muito homofóbicos ou violam os direitos das mulheres. Como se as balas e bombas seleccionassem o género ou sexualidade de quem matam. Costumo argumentar de várias maneiras contra este tipo de ideias contrárias à universalidade dos direitos humanos. Ocorre-me agora que bastaria lembrar as situações acumuladas de vulnerabilidade que fizeram de Gisberta um alvo de ódio. Não são temáticas quê?

 

Sérgio Vitorino

Precário. Participa no colectivo Panteras Rosa – Frente de Combate à LesBiGayTransfobia

 

 

Nota: Artigo intencionalmente marcado por palavras terminadas em "x", numa opção de inclusão de género.

[1] Com honrosas excepções, a certo ponto, de um ou outro meio do Porto e de jornalistas individuais como Ana Cristina Pereira, do Público ou Fernanda Câncio, no DN.

 

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