Quem afirma ter sexo e nega ter género: considerações e críticas ao Gender Paranoia (Ideologia de Género)
No artigo 'Peço desculpa, tenho sexo, não tenho género', o autor José Manuel Fernandes, sugere esclarecer o que ele ainda não foi capaz de entender: orientação/preferência sexual não é o mesmo que género/papel de género, e muito menos, sexo biológico.
Mais uma vez, um texto que quer conjugar argumentação pretensiosa sobre uma temática obscuramente abordada em canais midiáticos. As pessoas eventualmente podem desculpar ao Sr. Manuel por não ainda ter tido a oportunidade de perceber o problema que pretendia clarificar, mas não sei se há desculpas por ser desleixado em sua crónica, e principalmente ao jornal e os responsáveis pelo editorial que permitiram a publicação desta desinformação.
No texto, é afirmado que nascemos homens e mulheres. Sim, boa parte dos sujeitos, porém não todos. É estatístico. Há quem nasça intersexo. O autor pode desconhecer esta realidade, pode não ter como vizinho(a) uma pessoa intersexual, mas, com apenas alguns clíques o Google pode lhe mostrar, até cientificamente, sobre a informação que lhe faltou.
Depois, é afirmado que 'uma coisa é o sexo com que nascemos e outra coisa são as preferências sexuais que mais tarde descobrimos'. Sim, mas, esta informação deixa alguma confusão. Se o artigo era para clarificar desentedimentos acerca do que é género e o que é sexo, falar de preferência sexuais, é um outro domínio, é confundir afetividade-sexualidade, as formas e maneiras com as quais as pessoas expressam e vivem o amor, com os papéis de género.
Somos, de fato, biologicamente determinados pelos cromossomas, na atribiuição e constituição do sexo com a qual cada uma das pessoas nasce. No entanto, uma vez num contexto social-histórico, somos inevitavelmente atravessados pela cultura. Desta forma, passamos a construir uma identidade por meio do acesso aos artifícios disponíveis nas culturas. É uma experiência mediada, mas sempre individual e única. Está para além de determinações da natureza, no caso dos humanos.
Os papeis de género são elementos culturais dos quais as pessoas apropriam-se, assimilam e constroem-se a partida. De modo como é falado no artigo sobre identidades, e principalmente, a afirmação de que o sexo biológico é o 'ponto de partida' e que 'faze-lo desaparecer' é uma violação, muda o tom da conversa. Está implícito a construção socio-cultural das identidades das pessoas, mesmo que o autor diga categoricamente que 'sermos homens ou mulheres não é uma construção cultural, é uma consequência da nossa biologia'. A controvérsia denuncia o desconhecimento.
Aqui fica claro de que o intuito da crónica perde-se. Fica evidente o desconhecimento discursivo. Ser do sexo masculino ou feminino (ou intesexo) é determinado. Ser homem ou mulher, é o género, é construir-se, formar-se, o que ocorre sob outras leis que não as naturais. Pessoas não são apenas sujeitos com a incumbência de reprodução de melhoria exclusiva da espécie, mais do que isso: pessoas são agentes criativos de si e da sociedade. Ou seja, os corpos discursivos estão num complexo diálogo com seus pares, construíndo não apenas suas (não) conformidades (dos corpos Cisgéneros aos Transgéneros), mas também, descobrindo, explorando sexualidades, experimentando o prazer sexual (aqui fala-se das diversificadas preferências sexuais, que, quando simplificadas, ocorrem no expectro da homossexualidade, heterossexualidade e bissexualidade), realização amorosa e por fim, o laço social. É tudo sobre um acontecer dialético e relacional.
Mais, o conceito de 'Evolução das Espécies' é mais dos elementos retóricos usados para defender, nesta crónica, a tese de que humanos foram feitos para seguirem instintualmente, e apenas, o sexo reprodutivo como natural. Ainda, fala-se mais uma vez de identidade. Então agora fica claro, que a tese a ser defendida no pedido de desculpas, é da família dita tradicional, das relações heteronormativas, do casamento. A identidade aqui exaltada é a heterossexual, tida como clássica, e o Gender Paranoia (ideologia de género), o que nada mais é do que um artifício bélico comtemporâneo e dicursivo para combater 'desviados, doentes e pecadores', e está intimamente ligado ao Conservadorismo, o que acaba por ser definitivamente contraditório ao Evolucionismo.
Por fim, o discurso ainda ganha cariz jurídico, evocando direitos, classificando minorias e afirmando violações contra identidades cisgêneras, aquelas que estão em conformidade com o sexo ao nascimento: a pretensão de clarificar torna-se protecionismo e divisão, coloca 'normais' em risco pelas práticas sexuais e identitárias dos classificados 'desviados'. Há uma grave acusação na crónica de que os não conformistas (Transexuais, Assexuais, Intersexuais, Homossexuais, Bissexuais... pessoas LGBTQ+), aderem automaticamente num plano de desmantelar os papeis de géneros, a masculinidade e a feminilidade, e transformar sociedades, anulando o binarismos, e introduzindo a neutralidade como um instrumento de dominação, sendo este último, um palanque íntimo dos grupos hegemónicos (Masculinidades Dominantes). Daí o medo que urge o discurso do artigo em proteger padrões, ideologias (mesmo que numa ideação paranoica), negando existências de 'Outros' agentes discursivos, de outros corpos não conformistas à imposição de leis naturais como uma definição única e possível da experiência humana.
O que efetivamente há de evoluído nos humanos é a nossa notável capacidade de comunicação e linguagem. É o que nos faz conhecedores e criadores de história e cultura. Negar possibilidades discursivas que carregam diversificados signos e sentidos para e da experiência humana, nada mais é do que também uma ideologia opressiva, uma postura discursiva de controlo que já esteve por de trás de atitudes repudiáveis que num passado não muito recente classificaram, encarceraram, estigmatizaram e destituiram a vida de milhões de pessoas, e certamente, não foi por serem do sexo masculino ou feminino. Estamos para além dos papeis de homem e mulher. Ao autor do artigo, desculpo o erro crasso do ignorância que lhe trouxe à terrenos desconhecidos, no entanto não há desculpa para ele e quem queira veicular erroneamente informações sobre género, sexo e sexualidade, negando existências e possibilidades humanas.
Delso Batista, Psicólogo, (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Brasil), Mestre em Psicologia Clínica e Aconselhamento (Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, Lisboa) e Doutorando em Psicologia Aplicada (Universidade do Minho, Braga)