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Quem és tu para me dizer o que eu sou ou não sou?

miguel matos opinião

Enquanto se luta pelo fim da discriminação da comunidade queer no seio de um mundo governado por uma concepção heteronormativa da identidade, ainda há exemplos de como na própria comunidade queer existe um afirmar de regras que pretendem excluir os seus próprios elementos numa espécie de autofagia e auto-segregação.

 

Há uns dias, e depois de algum tempo de interregno, realizou-se a Mina, um evento feminista queer, que é no fundo uma rave realizada num espaço industrial no Prior Velho, o Planeta Manas. A organização é responsabilidade da Associação Cultural Mina e Rádio Quântica. “Nenhuma forma de abuso, discriminação ou comportamento inapropriado para com membres da equipa ou pessoas presentes será tolerada”, diz o site do Planeta Manas. O evento depende da aquisição de um “cartão de sócio”.

No passado dia 30, munido do meu cartão de sócio válido, dirigi-me à festa com o meu namorado e um amigo. À porta encontrámos mais seis amigos, brasileiros e franceses, maioritariamente frequentadores habituais do espaço e com cartão de sócio. Foi-nos recusada a entrada como grupo, pelos membros da organização que estavam na porta. Um deles riu-se na nossa cara e disse que não achava que fôssemos queer, e portanto não permitia a nossa entrada. Fechada a porta, um dos elementos ficou a espreitar para fora através do vidro a rir-se de nós. Mais tarde, estando o grupo reduzido aos três elementos originais, a decisão na porta foi reafirmada. Educadamente retirámo-nos, com um sentimento de desrespeito e humilhação.

Um espaço que quer ser reconhecido como safe space para a auto-expressão de todas as identidades queer, revela-se problemático quando tenta ele próprio definir e reduzir aquilo que os seus organizadores entendem como identidade, aparência e comportamento queer. Ao longo do dia seguinte fomos sabendo de muitos casos de pessoas racializadas às quais foi recusada a entrada, para privilegiar pessoas brancas e de aparência “fem”.

O espectro da comunidade Queer não pode ser reduzido a uma manifestação visual de inconformidade de códigos visuais associados à expressão de género? Não estamos perante um ataque aos próprios fundamentos de inclusão da comunidade Queer quando se recusa a entrada a pessoas queer e racializadas, com a justificação de que elas não têm uma aparência e estilo queer, sendo que essas pessoas fazem parte da comunidade queer? Especialmente quando estas são frequentadoras assíduas deste evento e dependem dele como sendo o único local em Lisboa onde elas podem ser quem são em liberdade e segurança.

Isto acontece quando se tenta anular e desvalorizar a identidade pessoal de alguém, negando a membros da mesma comunidade o acesso a uma manifestação que é cultural e política. Pior ainda, ridicularizando publicamente a identidade de alguém, seja ela queer ou não, ao rir na cara do indivíduo com escárnio e desrespeito. Um simples não seria mais respeitoso do que um esgar de troça e a frase “não és queer”. Quem é queer ou não, não é assunto de decisão externa, e a afirmação pública de anulação da identidade de alguém vai contra todos os fundamentos de qualquer que seja o evento desta natureza. Dizer “não és suficientemente queer” é o mesmo que negar a entrada em algum espaço e dizer “não entras porque és queer”. É ofensivo, problemático e reprovável. A primazia de uma superficialidade visual queer em detrimento da valorização da identidade pessoal de cada indivíduo e anulação externa da mesma é ainda um reflexo de heteronormatividade presente nas instituições queer como esta em questão. É o mesmo binário perigoso “se não aparentas é porque náo és – se aparentas é porque és”. E isto não teria grande pese se não viesse de uma instituição com os valores que esta associação diz ter e defender.

No fundo, em linguagem simples: “Quem és tu para me dizer o que eu sou ou não sou?"

 

Miguel  Matos

 

Nota: a organização foi contactada sobre este assunto, mas não respondeu.

 

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