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"Recordações da Minha Inexistência: Memórias" de Rebecca Solnit 

livro recordações da minha existência

Certo dia, muito tempo atrás, olhei para mim mesma de frente num espelho de corpo inteiro e vi  minha imagem escurecer e ficar nebulosa e então recuar, como se eu estivesse desaparecendo do  mundo, e não afastando aquilo da minha mente.” (P.9:2021) 

 

É na memória da imagem turva do seu corpo adolescente, reflectido em frente aquele espelho  cerrado do seu pequeno apartamento que, Rebecca Solnit, inicia o seu livro de memórias,  “Recordações da Minha Inexistência” (2021). Uma obra autobiográfica que nos dá a conhecer o  encontro da sua existência enquanto mulher, feminista, escritora, activista, numa América marcada  pela desigualdade, violência e assédio sexual, pelo conservadorismo misógino, pelo racismo, pela  homofobia, e pelo início de uma crise global do VIH-SIDA.  

Escritora, historiadora e activista feminista, Rebecca Solnit é autora de mais de duas dezenas de  livros feministas, entre os quais: “As coisas que os Homens me Explicam” (2016), “A Mãe de  Todas as Questões” (2017), “De Quem é Esta História? Feminismos para os Tempos Atuais”  (2020) e “Recordações da Minha Inexistência: Memórias” (2021). Debruçando-se também sobre  outras questões, como a colonização e genocídio das tribos indígenas americanas, o financiamento  bélico e armamento nuclear, os impactos ambientais da extração de minerais, a insurreição popular  e mudança social, entre outros temas que nos mostram o comprometimento da sua escrita para com  questões em torno do risco, violência e empoderamento social. 

Após trinta anos de carreira, Solnit, volta a reconstituir vários fragmentos do seu passado naquela  Califórnia dos anos 1980. Uma Califórnia da era do punk, da pós-contracultura onde aos 19 anos  encontra o seu primeiro apartamento, seu casulo para metamorfose de idade adulta. Retrata também  as dificuldades e descobertas nesta transição de ciclo de vida. Marcada pela pobreza, pelo medo e  incerteza, numa época onde as mulheres eram excluídas da arena política e cultural,  descredibilizadas moral e intelectualmente, alvo de perseguição sexual e violência nas ruas, a autora descreve a resiliência para com as dificuldades encontradas na desvalorização do seu trabalho até ao  encontro do sucesso e popularidade do seu trabalho, sendo hoje uma das ensaístas feministas mais  influentes na América. 

Revela-nos, também, a fonte de libertação onde encontrara a sua voz e coragem. Primeiramente, o  prazer pela leitura e necessidade da escrita como forma de expressão; também, a relação com o seu  irmão, que lhe dera a conhecer o activismo político; o desejo constante em perde-se entre viagens e  caminhos sem rumo mostrava ser espaço de reflexão e inspiração para as suas obras; mas sobretudo,  as amizades e vivências que fizera no Bairro Castro, em São Francisco, epicentro da dissidência  política e cultura gay na altura. Uma fonte de libertação que, segundo Solnit, fora para si  “contagiante”. 

Através da comunidade gay do Castro, Solnit, redescobre novos modelos de criar o género, de  família assim como do significado da felicidade: “Os gays e lésbicas ao meu redor me  incentivaram a imaginar que o género é o que quer que você queira; que era possível quebrar as  regras, e o preço a pagar por quebrá-las geralmente valia a pena” (P.193). É através da  comunidade gay e da perseguição homofóbica que a autora encontra a experiência partilhada de  violência de género, no qual a feminilidade homossexual mostra ser o principal motivo de sujeição: 

Quando um homem homofóbico zomba de um homem gay, quase sempre o compara em termos  desfavoráveis a uma mulher. Os gays eram desprezados por serem homens que, na imaginação  dos homofóbicos, optavam por ser como as mulheres. Como as mulheres por serem penetrados,  já que ser penetrado era visto como ser conquistado, invadido, humilhado. Desprezados por  serem como as mulheres heterossexuais, sujeitas aos homens.” (P.197) 

Solnit salienta a importância da credibilidade enquanto instrumento básico de sobrevivência. De  como esta ferramenta é tanto sinónimo de poder e status quo como de libertação e reconhecimento  social. Trazendo questões como: “Quem tem direito a ter voz?”; “Quem tem direito a ser  ouvid@?”; “Quem é silenciad@?”, elucida-nos para as formas de violência, invisibilidade e  desvalorização humana permitidas pela força do silêncio patriarcal, machista, misógino, que  empurra formas de vida “anti-normativas”para o segredo e para a vergonha.  

Mais do que um livro de memórias este é um livro feminista. É uma nota solidária e de  encorajamento para com o valor da diferença e das margens. É uma obra poética rumo à descoberta  da sobrevivência, do poder de transformação e de afirmação das vozes plurais que constroem o  feminino.  

 

Tradução: Isa Maro Lando 

Género: Ensaio 

ISBN: 9788535933598 

Idioma: Português (BR)  

Publicação: 2021 

Editora: Companhia das Letras 

Páginas: 264

 

Daniel Santos Morais é mestre em Sociologia pela Universidade de Coimbra. Feminista, LGBTQIA+, activista pelos Direitos Humanos. Partilha a sua vida entre Coimbra e Viseu.