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Ricardo Falcato: "A infecção não mata, mas a discriminação sim"

ricardo falcato

O Dia Mundial de Luta Contra a Sida já passou, mas continuamos a dar destaque a este assunto. Fomos falar com o Ricardo, uma das 10 pessoas que deram a cara pela campanha "Sou VIH+ e Vísivel".

Eu tenho VIH, mas não é a infecção que me define.

dezanove: Quem é o Ricardo?

Ricardo Falcato: Tenho 43 anos, sou licenciado em Literatura e História, trabalho há 9 anos na área do IT, onde para além das tarefas que me estão assignadas, me dedico ao voluntariado na área dos direitos humanos com os colegas da empresa.

Fora da área profissional, sou alguém bastante comum. Sempre me dediquei ao voluntariado, de há uns anos a esta parte mais focado na temática do VIH; gosto de socializar, estar com amigos, sair. Sou também apaixonado por livros.

No meu dia-a-dia dedico-me ao trabalho, à escrita, ao ensino e à família.

 

Há quantos anos vives com a infecção por VIH? Como vivenciaste o diagnóstico na tua realidade (falando da tua localidade / país / grupo social)?

Descobri em 2014 que estava infectado com VIH. Foi um processo bastante doloroso e sofrido. Desde 2012 que apresentava sintomas: infecções secundárias, perda de peso, problemas gástricos; todavia, sempre adiei fazer o teste. Pensava que tendo tido sempre relações sexuais protegidas seria impossível estar infectado. Fiz uma bateria de exames e tudo estava negativo para os sintomas que apresentava.

Quando, finalmente, decidi testar-me para o VIH e soube estar positivo o meu mundo desabou e entrei numa grave depressão, que demorei cerca de 5 a  6 anos a ultrapassar. Apesar de na altura do diagnóstico saber que as pessoas com VIH faziam uma vida “normal” e de a terapêutica estar bastante avançada, foi como uma sentença de morte.

Quando, finalmente, decidi testar-me para o VIH e soube estar positivo o meu mundo desabou e entrei numa grave depressão, que demorei cerca de 5 a  6 anos a ultrapassar. Apesar de na altura do diagnóstico saber que as pessoas com VIH faziam uma vida “normal” e de a terapêutica estar bastante avançada, foi como uma sentença de morte.

Devido à minha ignorância face ao vírus e à desinformação dos técnicos de saúde que me acompanharam, tudo deixou de fazer sentido e entrei numa espiral de destruição de consumo de álcool e drogas. Pensava muitas vezes “Vou morrer de qualquer maneira, porque hei-de estar a ter cuidado comigo ou com a minha saúde?”

Sempre fui um homem magro, mas depois do diagnóstico e primeiros tempos de tratamento não conseguia olhar para o espelho sem ver uma pessoa doente. Atormentava-me o receio de que os outros pudessem saber do meu estado serológico. A nível íntimo tinha sempre medo de poder infectar o parceiro, medo de que descobrissem. Pensei durante muito tempo não ser capaz de ter uma vida normal, namorar, ter amigos, ter relações sexuais sem culpa. Era como se sentisse que estava a ser castigado pela minha orientação sexual (muito por culpa da educação cristã que recebi).

Pensei durante muito tempo não ser capaz de ter uma vida normal, namorar, ter amigos, ter relações sexuais sem culpa. Era como se sentisse que estava a ser castigado pela minha orientação sexual (muito por culpa da educação cristã que recebi).

Só passados alguns anos, com o recurso ao grupo de auto-ajuda para pessoas com VIH do GAT e com apoio psicoteapêutico e psiquiátrico, consegui interiorizar que o VIH não é uma sentença de morte e decidi trabalhar mais activamente na área do VIH, mostrando através do meu percurso de vida que é possível ter uma vida feliz e completa mesmo com o VIH.

Não esqueço, nem posso esquecer, pois estão-me colados à pele, todos os quarenta anos de narrativa que foi sendo construída por tantas e tantos que morreram com SIDA, mas tento reescrever essa narrativa, que se encontra hoje num novo capítulo.

Só passados alguns anos, com o recurso ao grupo de auto-ajuda para pessoas com VIH do GAT e com apoio psicoteapêutico e psiquiátrico, consegui interiorizar que o VIH não é uma sentença de morte e decidi trabalhar mais activamente na área do VIH, mostrando através do meu percurso de vida que é possível ter uma vida feliz e completa mesmo com o VIH.

 

Como é viver com VIH no século XXI?

Apesar do longo tempo que demorei a aceitar a minha condição, posso dizer, pela minha experiência, que ter VIH no século XXI é ter uma “doença” crónica, sendo que, no meu caso, desde que passei a indetectável nunca tive nenhum problema de saúde associado ao VIH. Ou seja, lembro-me do VIH uma vez por dia, quando faço a toma da medicação.

Desde que passei a indetectável nunca tive nenhum problema de saúde associado ao VIH. Ou seja, lembro-me do VIH uma vez por dia, quando faço a toma da medicação.

O grande desafio deste século continua a ser o estigma e a discriminação. Apesar de toda a informação disponível muita gente ainda vê na pessoa com VIH os estereótipos dos filmes e séries que retratam pessoas infectadas dos anos 80 e 90 do século passado.

Ainda que com todos os recursos que temos hoje em dia, como a PreP, a PeP, o preservativo, o I=I (indetectável igual a intransmissível, isto é, não se transmite o vírus) já tive parceiros que se recusaram a ter relações sexuais devido a eu ser seropositivo. Já houve técnicos de saúde que mostraram o seu preconceito em tratar-me. Tenho ainda o episódio de uma tatuadora que recusou atender-me ao saber da minha condição.

Já tive parceiros que se recusaram a ter relações sexuais devido a eu ser seropositivo. Já houve técnicos de saúde que mostraram o seu preconceito em tratar-me. Tenho ainda o episódio de uma tatuadora que recusou atender-me ao saber da minha condição.

Como costumo afirmar, a infecção não mata, mas a discriminação sim. 

 

Achas que ainda há muita desinformação relativamente ao VIH?

Penso que a desinformação em relação ao VIH é um problema estrutural na sociedade portuguesa. As pessoas só querem saber e informar-se quando o problema é com elas. 

Penso que o Estado Português se preocupa muito pouco em dismistificar o VIH. Falo do VIH como poderia falar da homossexualidade ou da transexualidade. Não vejo uma acção de formação concreta nas escolas em relação a temas como os que acima mencionei. Temas importantes que deveriam ser discutidos e explicados na franja mais jovem da sociedade, de forma a poder  formar uma opinião crítica. Não é por acaso que Portugal é dos países da Europa com maior taxa de novas infecções por VIH. O trabalho que vejo ser feito é através de associações não governamentais, como o GAT, a Abraço, a SER+. 

As pessoas só querem saber e informar-se quando o problema é com elas. Penso que o Estado Português se preocupa muito pouco em dismistificar o VIH. Falo do VIH como poderia falar da homossexualidade ou da transexualidade. Não vejo uma acção de formação concreta nas escolas em relação a temas como os que acima mencionei.

Existe muita informação, creio não ser correctamente veiculada nem levada a sério pelos diversos governantes que passaram pelo poder desde os anos 80.

O trabalho que vejo ser feito é através de associações não governamentais, como o GAT, a Abraço, a SER+. 

 

O que te levou a participar na campanha “Sou VIH+ e visível”? 

Como já mencionei, o GAT teve um papel muito importante na minha aceitação enquanto indivíduo seropositivo. Quando me foi feito o convite, aceitei de imediato, pois julgo ser de extrema importância dar a cara, chegar à mais variada população e dismistificar o que é o VIH.

Ao participar na campanha, e também o trabalho que desenvolvo na Fujitsu Portugal, espero ter chegado (e sei que sim) a várias pessoas, mostrando que sim vivo VIH, mas sou também filho, amigo, trabalhador, activista. Eu tenho VIH, mas não é a infecção que me define.

 

Entrevista de Ricardo Falcato e Marta Pimentel Santos