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Ricardo Fonseca: "A escrita ajudou-me a aceitar como era"

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Ricardo Fonseca é enfermeiro, escritor e terapeuta. Nasceu em Lamego e foi lá que começou a escrever. Através dos seus textos expressou emoções e iniciou o seu percurso de autoconhecimento. Em 2007 lança o seu primeiro livro "A Chave do Labirinto" onde num registo intimista partilhou algumas das suas histórias e vivências. “Calcorreando Percursos” em 2011 é o segundo livro que mantém o mesmo registo.  

Convidamos os leitores do portal dezanove.pt a conhecer um pouco melhor este autor que considera a escrita uma importante ferramenta terapêutica.

dezanove: Em que período da vida começou a escrever?

Ricardo Fonseca: Comecei a escrever desde muito cedo, por volta dos 12 anos, quando frequentava o ensino secundário. Nessa altura, senti a necessidade de escrever (em prosa e/ou poesia), sobre o que sentia, tendo em conta que muitos dos meus sentimentos não podiam ser partilhados com a família e com os amigos e que muitos deles não eram entendidos por mim.  

Ao mesmo tempo, nessa altura sofria sozinho com alguma discriminação da qual fui alvo, por conviver só com raparigas e não gostar de jogos ditos masculinos e refugiava-me nas palavras para chorar, para sorrir, para amar em segredo e para viver comigo mesmo. A escrita foi o meu escape, a forma que encontrei para expressar o que sentia, desabafar, mesmo que fosse com o meu diário. 

 

De que forma a escrita foi importante no processo de descoberta e consolidação da orientação sexual?

Posso afirmar que foi muito importante, tendo um papel muito especial no meu processo de coming out, ajudando-me a perceber o que sentia e como lidar com aqueles sentimentos, que de certa forma eram contraditórios tendo em conta os valores familiares e os juízos alheios. Lembro-me da primeira vez em que escrevi uma carta a uma amiga, a falar da minha orientação sexual, com receio, mas de forma genuína e pura, tendo sido um dos meus primeiros contactos com a escrita como ferramenta de libertação, de partilha de emoções. Lembro-me também de escrever poemas sobre o que sentia, no que diz respeito ao amor por alguém na altura inalcançável e escrever sobre essa proibição e de todo o sofrimento associado e lembro de igual modo das cartas escritas aos meus pais, após a revelação da minha orientação sexual e de todo o processo de perdão, compreensão e aceitação. 

A escrita ajudou-me a aceitar como era, como sou e também ajudou-me a partilhar com quem me rodeava, de forma pura e genuína e sem qualquer barreira ou filtro, tornando-se uma ferramenta de liberdade e crescimento. 

 

Onde começou por partilhar os primeiros textos?

Os meus primeiros textos estavam todos escritos num diário e num livro de papel reciclado que me tinham oferecido. Guardo-os ainda hoje comigo, passados tantos anos. Depois fui transcrevendo alguns textos para blogues (quando começaram a ser utilizados), criando blogues temáticos, sobre memórias, viagens, amores e desamores e ia partilhando o blogue com os amigos mais próximos, mesmo sabendo que estavam disponíveis para qualquer pessoa ler. Não tinha receio que lessem os meus textos e fui publicando com mais frequência, com mais sentimento e menos receio de me dar a conhecer. 

 

Como era a relação com a orientação sexual e com os outros antes do primeiro livro onde se deu a conhecer?

Confesso que a minha relação com a minha orientação sexual era muito boa, ou seja, já tinha vivido na altura o meu verdadeiro e intenso processo de aceitação, assumindo-me perante a família, os amigos mais próximos e todos aqueles com quem de certa forma sentia que podia partilhar, não querendo dizer com isto que sentia qualquer obrigação ou motivo para o fazer, apenas sentia-me à vontade para tal. A minha relação com os outros (família, amigos, colegas), antes do lançamento do primeiro livro, era uma relação verdadeira e de partilha, sem medos e filtros, apesar de que muitas das minhas experiências pessoais, muitos dos meus desafios e muitos passos da minha aceitação foram revelados no livro e as pessoas em causa nem imaginavam parte do que já tinha passado e como tinha ultrapassado esses desafios. Posso dizer que antes do lançamento do primeiro livro, sentia que faltava algo, que faltava partilhar mais de mim, do que vivi até me aceitar e após a aceitação da minha forma de ser, estar e amar! 

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Os dois primeiros livros “A Chave do Labirinto” e “Calcorreando Percursos” são compilações de vários textos onde faz diversas reflexões pessoais e retrata momentos da sua vida. O que tinha em mente ao publicar estes textos?

Confesso que antes de publicar o primeiro livro, vivi momentos de pânico, querendo voltar atrás em todo o processo e desistir, com medo da reação das pessoas mais próximas ao lerem partes da minha vida e de todas aquelas pessoas com quem convivia, acima de tudo profissionalmente. Depois de um grande processo de aceitação da publicação do livro, percebi que estes livros faziam parte de mim e do meu processo de aceitação, ou seja, só colocando em palavras e partilhando com o mundo é que eu seria visto, escutado, compreendido e amado, pois tudo aquilo que eu tinha sido incapaz de dizer e partilhar pessoalmente, estava ali, naqueles livros, naquelas memórias, naquelas histórias. Estes livros eram extensões do meu ser, de quem eu era e sou e senti que devia partilhar com quem me quisesse ler, pois de certa forma, mesmo que inconscientemente, sabia que poderia ajudar alguém, poderia facilitar as relações que eu tinha a vários níveis, pois poderiam conhecer-me melhor, pois eu estava assim também a conhecer-me melhor. 

 

Não sentiu medo de expor a sua intimidade com desconhecidos?

Medo? Senti e ainda hoje sinto! Não tanto por expor a minha intimidade, pois apesar de considerar que me dispo quando escrevo sobre os meus sentimentos e experiências, nunca fico totalmente nu, ou seja, o meu interior tem locais só meus, onde por mais que escreva, mais que partilhe, só pode entrar quem eu permitir e convidar. Nem tudo é partilhado através da escrita, aliás os meus textos são na sua maioria escritos através de metáforas onde falo de mim através de outras histórias, com muitas mensagens escondidas no meio das palavras e pegando no que disse no início, posso despir, mas há sempre um peça de roupa que fica por tirar. Não tenho medo de me expor perante os outros, pois vejo a minha escrita, mais do que uma exposição da intimidade, vejo-a como uma forma de partilhar vivências com quem as pessoas se possam identificar de alguma forma. 

 

O que retira da interação com os leitores?

Vida! Emoções! Sentimentos! Partilha! É o que sinto e o que me nutre na minha interação com os leitores. Tenho recebido excelentes feedbacks, que mais do que relacionados com a escrita em si, são relacionados com as histórias com as quais os leitores se identificam e que lhes servem de apoio, orientação para viverem as suas próprias experiências. Tenho aprendido muito com os meus leitores, com a sua leitura dos meus textos e a sua visão muito pessoal e ao mesmo tempo coletiva, como se partilhássemos o mesmo espaço, o mesmo tempo, a mesma história. É claro que existem interações menos felizes, mas mesmo essas ajudam a melhorar, a crescer e a compreender que nem todas as pessoas sentem da mesma forma e têm a mesma vontade e capacidade de caminhar, de se conhecer, mas mesmo nesses momentos sei que as minhas palavras criaram alguma reação e só por isso valeu a pena ter escrito. 

 

Além de enfermeiro e escritor o Ricardo também é terapeuta e tem no site pessoal diversas opções de workshops temáticos. Nunca pensou criar um direcionado a pessoas LGBT? De que forma um workshop poderia ajudar uma pessoa que está a passar uma situação complicada devido à sua orientação sexual? 

No que diz respeito aos workshops de escrita terapêutica (escrita do autoconhecimento) que facilito, tentei de certa forma abranger todas as pessoas sem qualquer filtro de qualquer género. Se por um lado a diferenciação do público-alvo dos workshops pode ser útil, por outro lado pode criar a ideia de “gueto” ou segregação, no sentido em que poderia ser compreendido como uma forma de não juntar as pessoas dada a sua orientação sexual ou por outro motivo qualquer. Daí ter criado os workshops gerais, com várias temáticas a serem trabalhadas e outros temáticos, que acabam por ser a divisão do workshop geral, em algo mais específico, mas sempre para a população em geral.  

Respondendo à questão colocada, já pensei em criar e desenvolver um workshop específico para a população LGBT, visto que até já pertenci a uma associação de apoio a jovens LGBT, acreditando que o mesmo pode ajudar qualquer pessoa que esteja a viver uma situação menos positiva relacionada com a sua orientação sexual. Neste caso concreto, a escrita pode ser utilizada como uma ferramenta terapêutica e muito importante para auxiliar em processos de aceitação pessoal, de aceitação pelos outros, para trabalhar alguns medos, alguns sonhos, objetivos de vida, mudanças, entre outros fatores. É um workshop, que se transforma em algo revelador, cujas técnicas apresentadas podem ser utilizadas em vários momentos da vida e sempre que as pessoas quiserem e sentirem necessidade de as utilizar. 

 

Já publicou outro livro em 2013 “Reflexos” onde sai deste universo pessoal e intimista. Que caminho pretende seguir na escrita?

Apesar de o livro “Reflexos” ter sido diferente dos primeiros livros, no que diz respeito ao tipo de textos partilhados, acabou por ser algo muito pessoal, por ser o meu ponto de vista sobre alguns aspetos do nosso dia-a-dia, da forma como vejo, escuto, sinto e vivo a vida. É neste caminho que pretendo continuar a escrever, seja de forma mais intimista, com relatos de histórias e vivências pessoais, que sirvam de inspiração para as outras pessoas ou através de reflexões sobre a minha forma de viver e gerir as minhas emoções. A minha escrita defino-a como uma forma de Cuidar, tal como cuido profissionalmente das maleitas físicas, como das maleitas emocionais. É esse o caminho que quero continuar a percorrer cada vez que escrevo, tendo como objetivo ser uma fonte de inspiração para os meus leitores e para quem participar nos workshops, de modo a que sintam e vivam a Vida com intensidade, que se envolvam de esperança e que sejam mais felizes!  

 

Para contactar o autor pode visitar o seu site ou então acompanhar a página do Facebook.

 

Carlos Maia