Santa Vilgeforte, uma Santa Transexual?
Santa Liberata: Santa, Portuguesa e Transexual?
São várias as estórias e lendas pagãs que resistindo ao longo dos séculos chegam até a nós em jeito de literatura fantástica, contos de fadas ou contos populares. Criadas para enriquecer o imaginário e a memória popular, o simbolismo destas narrativas folcloristas mostram-nos a riqueza da ancestralidade imaginada, o diálogo entre o mistério, a religião e a ciência, a construção do desejo e do real quotidiano.
A lenda que aqui trazemos é-nos particularmente querida, não fosse ela expressão da construção do imaginário simbólico LGBTQIA+ em relação à desconstrução do binómio sexo/género, da androginia, transgeneridades e identidades Queer. De seu nome Vilgeforte ou Santa Liberata, mártir portuguesa que ficara celebremente conhecida na idade média pelos seus retratos litúrgicos em que aparece crucificada com uma túnica e de barba frondosa.
De acordo com a lenda, Liberata nascera na Lusitânia, Portugal, por volta do ano 119, tendo antes de ser elevada a santa conhecida pelo nome de Vilgeforte. Filha de um rei pagão, de carácter duvidoso, fora oferecida em casamento ao rei da Sicília, que se mostrara caído de amores pela beleza extraordinária da princesa “bela como uma flor da Primavera”.
Mostrando a recusa deste enlace, lutando contra os ditames masculinos em defesa da sua castidade, e como os tempos eram outros, a sexualidade da princesa fora rapidamente questionada associando a a heresia da lesbiandade. Recorrendo a inúmeras preces, Vilgeforte, pedia a Deus que a salvasse e que lhe retirasse a beleza que lhe causara tantas pretensões e angústias. Das suas preces parece ter resultado em poucos dias o bizarro mistério em torno do seu corpo, ao qual teria ficado totalmente coberto por pêlos - rosto, braços, pernas, barriga e costas, à semelhança de um animal feroz.
O rei da Sicília, seu pretendente, aquando se apercebera da aparência da princesa rapidamente desistira dos seus intentos levando a que o pai da noiva a mandasse crucificar como Cristo, de barba rija, virgem e solteira. Vilgeforte, em tudo igual a Cristo, rosto pesaroso e barbado mas com trajes femininos e fartos seios ao peito, ficara eternizada pela lenda medieval de Santa Liberata (do latim “libertada”), por se ter livrado de um casamento infeliz e forçado. Liberata torna-se como uma padroeira das mulheres vítimas da violência infligida pelos maridos, padroeira das malcasadas, símbolo da libertação do patriarcado pelas suas preces e protecção de um indesejável casamento.
O fascínio pela mágica em torno da representação pictórica de Liberata, uma mulher coberta de pêlos, de barba rija e vestida com uma impecável túnica, traz a curiosidade desta Santa enquanto um ícone das comunidades LGBTQIA+, uma mulher independente e insubmissa.
Entre a construção da mágica em torno de contos pagãos mais ou menos fantásticos podemos encontrar em Liberata um símbolo de transgressão das práticas sociais, dos conceitos de sagrado, dos padrões e das práticas sociais, que tendiam não só a secundarizar a figura e papel da mulher, como regulavam os seus corpos e sexualidades. Entre estas reminiscências pagãs até aos dias de hoje certamente que muito mudou, ainda assim questiono-me, será possível nos dias de hoje a garantia do reconhecimento das nossas diferenças e subjectividades? Poderemos ser quem somos, nas nossas diferenças e similitudes? Deixo-vos com esta pequena reflexão.
Daniel Santos Morais é mestre em Sociologia pela Universidade de Coimbra. Feminista, LGBTQIA+, activista pelos Direitos Humanos. Partilha a sua vida entre Coimbra e Viseu.
Foto: mitologia.pt