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Saúde Mental e Identidade de Género: Como os processos de auto-identificação e aceitação de género podem impactar a saúde mental 

leticia david psicologa

Nos últimos anos, a compreensão sobre identidade de género tem evoluído  consideravelmente. Cada vez mais, reconhecemos que o género vai além de uma  concepção binária, abrangendo uma multiplicidade de experiências. No entanto, para  muitas pessoas trans e não-binárias, o caminho para a auto-identificação e aceitação  de género pode ser desafiador, influenciando profundamente a sua saúde mental.  Neste artigo, iremos explorar como os processos de auto-identificação e aceitação de  género podem impactar o bem-estar psicológico, e reflectir sobre a importância de um  apoio especializado e inclusivo. 

Auto-identificação e saúde mental 

A auto-identificação de género é um processo profundamente pessoal. Envolve o  reconhecimento e a compreensão da própria identidade, muitas vezes em contraste  com as expectativas e normas impostas pela sociedade. Para pessoas trans e não binárias, este processo pode ser libertador, mas também pode ser repleto de  dificuldades emocionais. 

Durante o período de auto-exploração, é comum surgirem sentimentos de confusão,  ansiedade e medo. O confronto entre a identidade interna e as expectativas externas  pode gerar um grande stress psicológico. Para muitos, a rejeição social, o estigma e a  falta de representação positiva criam um ambiente hostil, que intensifica os desafios  emocionais. Estudos indicam que pessoas trans e não-binárias têm taxas mais  elevadas de depressão e ansiedade, frequentemente resultantes da falta de aceitação  social e do estigma associado à sua identidade de género. 

Além disso, o processo de auto-identificação pode ser ainda mais complicado quando  existe uma falta de linguagem ou de modelos de referência. Muitos indivíduos não binários, por exemplo, relatam sentir-se invisíveis ou incompreendidos, tanto na  sociedade como dentro da própria comunidade LGBTQIA+. A falta de reconhecimento  da sua existência e a ausência de termos que descrevam adequadamente a sua  experiência podem gerar frustração e isolamento, afectando negativamente a sua saúde  mental.

 

A aceitação de género: um processo individual e colectivo 

A aceitação de género é um processo de várias camadas. No nível individual, envolve a  aceitação pessoal da identidade de género. Este é um momento crucial, pois é a base  sobre a qual se constroem sentimentos de autoestima e bem-estar. Para muitas  pessoas, a aceitação plena pode levar tempo, especialmente quando existem barreiras culturais, familiares ou religiosas que dificultam o reconhecimento da sua  identidade. 

A aceitação colectiva, por outro lado, refere-se à aceitação que a pessoa encontra na  sua rede social, família e na sociedade em geral. Quando a pessoa é acolhida e  apoiada no seu processo de aceitação de género, a sua saúde mental tende a melhorar  significativamente. No entanto, quando enfrentam rejeição, discriminação ou  transfobia, as consequências emocionais podem ser devastadoras. É comum que  pessoas trans e não-binárias que enfrentam rejeição social experienciem sentimentos de solidão, vergonha e baixa auto-estima, o que pode agravar problemas de saúde  mental, como depressão, ansiedade e até comportamentos suicidas. 

A aceitação familiar, em particular, é um factor determinante para a saúde mental.  Estudos mostram que pessoas trans que são aceites pela sua família têm menores  taxas de depressão e ansiedade, e apresentam uma maior resiliência emocional. Por  outro lado, a rejeição familiar pode ter consequências graves e duradouras, levando a  um aumento do risco de auto lesões e ideação suicida. 

 

O impacto dos processos de transição na saúde mental 

Para muitas pessoas trans, o processo de transição – seja ele social, médico ou legal – é uma parte essencial do seu bem-estar psicológico. No entanto, esse processo pode  ser complicado e demorado, e muitas vezes envolve obstáculos emocionais e  logísticos. Em Portugal, apesar de existirem avanços legais no reconhecimento da  identidade de género, o acesso a serviços de saúde especializados, como terapia  hormonal ou cirurgias de afirmação de género, ainda é limitado e pode ser  acompanhado de longas listas de espera. 

A experiência de estar num "limbo" durante o processo de transição pode ser  angustiante, aumentando o stress e a ansiedade. Além disso, a falta de formação dos  profissionais de saúde sobre as necessidades específicas das pessoas trans pode  contribuir para uma experiência de cuidados de saúde negativa, o que, por sua vez,  afecta a saúde mental. Sentir-se incompreendido ou desvalorizado pelos profissionais  de saúde pode aumentar a sensação de isolamento e gerar desconfiança no sistema  de saúde, afastando as pessoas trans do apoio de que tanto necessitam. 

No entanto, é importante sublinhar que, quando os processos de transição são  conduzidos com apoio adequado e em ambientes de respeito e validação, o impacto  na saúde mental é amplamente positivo. A transição pode trazer um alívio emocional  significativo, uma vez que a pessoa se sente mais alinhada com a sua identidade  interna, promovendo um sentido de completude e bem-estar.

 

A importância do apoio psicológico inclusivo 

No trabalho clínico com pessoas trans e não-binárias, é evidente que o apoio  psicológico especializado e inclusivo é essencial para promover a saúde mental  durante os processos de auto-identificação e aceitação de género. A terapia deve ser um espaço seguro, onde a pessoa pode explorar livremente a sua identidade, sem  medo de julgamento ou incompreensão. 

Os profissionais de saúde mental precisam de estar preparados para compreender a  diversidade das identidades de género e para fornecer um apoio que reconheça as  dificuldades únicas enfrentadas por estas pessoas. Além disso, é fundamental  promover um ambiente terapêutico afirmativo, onde a identidade de género da pessoa  seja validada e respeitada. Técnicas como a terapia afirmativa de género, que centra a  experiência de género da pessoa como uma parte integral do processo terapêutico,  têm mostrado ser eficazes na promoção de uma saúde mental mais robusta. 

 

Conclusão 

A auto-identificação e aceitação de género são processos profundos e  transformadores, com um impacto significativo na saúde mental. Embora estes  processos possam ser desafiadores, especialmente num contexto social que nem  sempre é acolhedor, o apoio adequado pode fazer toda a diferença. É essencial que,  em Portugal, continuemos a avançar no sentido de garantir cuidados de saúde mental inclusivos e especializados, que respeitem e validem as diversas experiências de género.

 

Letícia David, Psicóloga