Segundo Fórum LGBTQIA+ do Bloco de Esquerda
Entre os dias 1 e 2 de Março deste ano, decorreu, em Coimbra, o II Fórum LGBTQIA+ do Bloco de Esquerda, na Escola Martins de Freitas, em Coimbra. Estive presente e, inclusive, participei na esmagadora maioria dos debates a que assisti - e agora partilho convosco a memória da minha experiência.
A envolvente pré-evento
Em nome da transparência, avanço que não sou militante do Bloco de Esquerda. Aliás, não sou, nem nunca fui militante de nenhum partido. Sou um eleitor de Esquerda, que vota de modo diverso, consoante a geometria variável das circunstâncias, programas, histórico dos partidos e quem as lidera - sem nenhuma ordem em particular. Posto isto, já votei nos vários partidos de Esquerda, incluindo no Bloco de Esquerda.
O primeiro Fórum deste tipo, organizado pelo Bloco, ocorreu há dois anos, no Porto. Nessa altura, contudo, não tive oportunidade de estar presente.
O evento é organizado, em particular, pelo grupo de trabalho LGBTQIA+ do Bloco de Esquerda. Deixo a nota que a simples existência de um grupo de trabalho demonstra a importância que um determinado partido com a dimensão do Bloco atribui a esta ou aquela causa. Enquanto ela é mais compreensível em partidos mais pequenos, em que faltam mãos para tudo, a sua ausência, nos restantes, pelo contrário, diz-nos muito sobre a prioridade que esta causa ocupa - ou não - na sua agenda.
Também é sempre de louvar estas iniciativas, porque sendo voltadas para a população extra-partido, permitem ao colectivo organizador sair da sua bolha e recolher contributos da própria comunidade abordada, ajustando a agenda política que pautará as suas acções subsequentes. Além disso, estes eventos são oportunidade para estabelecer (ou aprofundar) relações entre activistas, aprender sobre os temas lançados e promover a discussão entre todas as partes envolvidas.
Pelo que entendi, a já referida primeira edição esteve particularmente focada na questão do pinkwashing ou, por outras palavras, a cooptação da luta LGBTQIA+ feita por empresas meramente focadas em priorizar o seu lucro, em detrimento da luta social - transformando-a, com isso, numa série de acções desestruturadas, performativas, simbólicas, de mero entretenimento, esvaziadas de qualquer activismo real que possa efectivamente avançar a condição social da comunidade - pelo contrário, aliás, parasitando-a.
Passados dois anos, e reflectindo o crescimento nacional e internacional da Extrema-direita e da normalização do seu discurso, do aumento do número de ataques à comunidade e até da violência destes - e, mais ainda, da institucionalização dessa violência - o tema desta edição foi “O orgulho contra o conservadorismo".
Previsivelmente, o evento foi alvo de difamação prévia por parte do Chega (em especial, da parte da divisão local), insinuando que a realização do evento naquele espaço físico constituía endoutrinação das crianças - quando o evento decorreu num fim-de-semana, para a população em geral e não para os alunos que frequentem o estabelecimento - sendo o incidente quase que uma meta-demonstração do que acima dizia, isto é, que a dita violência contra a comunidade LGBTQIA+ está novamente a ser normalizada - não só na sociedade, em geral, mas nas próprias autoridades, que se comportam, nestas ocasiões, de um modo totalmente diverso daquele que demonstram em situações em que não há uma bandeira arco-íris presente, tratada como se fosse uma letra escarlate.
A disposição do evento
O Fórum esteve distribuído por três pavilhões da referida escola, renomeados e homenageando pessoas importantes para a comunidade: havia o espaço Al Berto, onde estavam os balneários (curiosamente, foi o único a que não fui), o espaço Joe, onde era feita a credenciação e a entrega de um tote bag com goodies (que incluía o documento preparatório do que virá a ser o manifesto do Fórum, que pautará o trabalho do Bloco na luta LGBTQIA+, nos próximos tempos, o programa do evento, a própria credencial, alguns autocolantes, e até um postal).
Havia dois sacos possíveis - eu escolhi o que dizia que direitos trans são direitos humanos (o outro era mais genérico, dentro da temática LGBTQIA+). Neste espaço ainda havia cafetaria (obrigado, SintraFriendly) e bancas com t-shirts, pins, etc. mas principalmente, livros (incluindo a Livraria Aberta, a quem acabei por comprar a Marginália nº1 logo no primeiro dia).
Finalmente, o espaço Gisberta. Este, incluía o auditório dos principais debates (discurso de abertura e de encerramento, keynote speech e discussão sobre o manifesto) e ainda englobava as quatro salas onde «mesas redondas», em paralelo, decorreram. Também estas salas celebravam nomes importantes da comunidade: sala Variações, sala Nava, sala António Botto e sala Judith Teixeira (obrigado, em particular, por esta referência, em nome pessoal: é urgente reverter o apagamento histórico desta escritora queer).
Posto isto, seguimos para o evento propriamente dito.
Primeiro Dia
Discurso de Abertura
A abertura, inicialmente prevista para as 10:30, começou apenas às 11:00, pela voz de Ana Carolina Gomes e Júlia Mendes. Ana Carolina começou por referir o clima actual de pressão da Extrema-direita e, especificamente, os ataques do Chega ao evento; daí, deu logo o mote para a visão interseccional da luta - que viria a marcar todo o evento, aliás - relacionando a luta da comunidade LGBTQIA+ com as lutas anti-racistas e anti-capacitistas.
Júlia, mulher trans, deu seguimento à abertura. Já por várias vezes falei que o verdadeiro apoio dos aliados a uma comunidade alvo de preconceito passa por lhe dar voz, em vez de ser seu «intérprete». Sendo a comunidade trans um dos principais alvos da Extrema-direita (e porta de entrada para outras futuras e previsíveis discriminações), o facto de o Bloco ter colocado a Júlia nesta posição, é de saudar, pois não só normaliza a voz política das pessoas trans, como sinaliza a importância que o Bloco está a dar ao problema. Em congruência, aliás, as próprias credenciais do evento tinham, não só uma linha para o nome, mas também para os pronomes.
Mais - a activista não apareceu simplesmente para dar o carimbo de inclusividade ao evento: Júlia Mendes foi quem falou mais das duas, neste espaço do programa. Júlia, por seu lado, focou-se noutra dimensão que não surpreendentemente, marcou as discussões ouvidas durante estes dois dias: a degradação do carácter político da luta, seja pela importação dos fantasmas da «ideologia de género» para a narrativa do próprio Governo, seja pelo esvaziamento político dos eventos, à mão dos já referidos interesses mercadológicos, de que é exemplo o Europride - que está a ser organizado à margem dos colectivos, pretende ser uma mera exploração das carteiras da comunidade e tendencialmente reduz a luta ao seu lado lúdico e, por isso mesmo, ajuda a anular, à nascença, qualquer associativismo transformativo que possa efectivamente contribuir para o avanço da cidadania plena da comunidade.
Keynote speech e debate: “A Extrema-direita e o mito da ideologia de género”
Recuperando algum atraso, com uma diferença de apenas 11 minutos face ao previsto, às 11:11 Joana Gomes abre o segundo espaço de reflexão e passa a palavra a Catarina Martins, ex-líder do Bloco.
Justapondo um pouco a que disse antes, Catarina Martins, reconhecendo-se como mulher cis hetero e feminista, colocou-se numa posição de humildade, de quem entende o seu lugar na luta LGBTQIA+ - isto é, como aliada e não como porta-voz/porteira. E é a partir do feminismo que ela faz a ligação ao que pode ser o seu contributo para a comunidade trans. Frisa ela que o feminismo não pode ser trans-exclusivo, sob pena de não ser feminismo, sequer.
É também a partir deste ponto de vista interseccional que ela passa da questão feminista mais lata passa para a luta clássica da Esquerda, isto é, a luta laboral, no que esta recai sobre as mulheres, tantas vezes votadas ao informalismo do trabalho doméstico não-reconhecido e não-remunerado, ou nas profissões já reconhecidas como tal, subalternizado, face ao dos pares masculinos, brancos, hetero, cis - dando particular destaque à exclusão laboral das pessoas LGBTQIA+ e voltando, assim ao tema central do evento, ao mesmo tempo demostrando que as lutas estão todas relacionadas e que as opressões não podem ser hierarquizadas.
Um ponto-chave que me ficou, da sua intervenção, foi aquele em que Catarina Martins, abordando o cerne do seu discurso (a «ideologia de género») e fazendo ligação ao clima internacional, aos ataques do Chega ao evento, à falsa equivalência entre agressores e agredidos na comunicação social e à normalização da Direita dita Democrática da agenda dos Fascistas - incluindo a supressão da brochura “O Direito a Ser nas Escolas” da Disciplina de Cidadania (por favor, façam o download da versão PDF aqui, vejam o que é que isto tem de mal e façam circular o documento, em especial junto dos que mais precisam de o ler) - levanta terceiro ponto que destaco, dizendo que estes ataques à escola inclusiva, em que o Governo não tem pudor de participar, não só colocam em perigo as pessoas da comunidade LGBTQIA+, como retiram o direito a aprender a quem quer saber mais e colaborar na inclusão - seja entre a comunidade escolar ou a própria família.
Este ponto sublinha o quanto o perigo do Fascismo transcende o sujeito que é directamente discriminado, revelando-se um dano sistémico (e, acrescento, de longa duração).
Finda a intervenção de Catarina Martins, foi aberta a discussão ao público, onde várias pessoas partilharam o seu testemunho e, com ele, o seu medo, a sua ansiedade e até as suas histórias pessoais de exclusão. Como este era um espaço seguro, houve oportunidade também para haver quem se apresentasse na sua condição queer, pela primeira vez, perante um público de estranhos, o que contribuiu para um mínimo de contraponto ao ambiente pesado que, por vezes, se sentiu, ao ouvir as histórias mais preocupantes.
A título de comentário pessoal, é sempre galvanizador ouvir ambas as situações - em especial, quando se avizinha uma luta séria. Não deixa de ser exasperante, contudo, especialmente para quem tem a minha idade, e assistiu a um princípio de mudança real da situação da cidadania LGBTQIA+, e há uns anos se previa ou se desejava que, por esta altura, já estivessemos mais próximos do direito à indiferença, do direito a ter vidas chatas e banais, estar agora a ver o filme a regredir, em tempo real e a ver-se o regresso de histórias de medo, opressão, ansiedade, insulto, ataque físico, assédio, ideação suicida, destruição de propriedade e até assassinato, que - não tendo desaprecido nunca - já não se ouviam há uns bons anos com tanta frequência e que nos deixam os olhos marejados de lágrimas.
Estas histórias, que saindo da boca de qualquer pessoa já são dolorosas, tornam-se ainda mais pungentes, sna boca de jovens: pessoas que estão agora a começar a sua vida e já começam o seu enquadramento social e biográfico vendo a comunidade em que estão inseridas como um meio hostil - às vezes, até, letal.
É por isto tudo que nos movemos para a luta. Por isso mesmo, a discussão terminou com uma nota positiva, de disposição à resistência, e foi com esse espírito que fomos almoçar.
Almoço
Tive oportunidade de almoçar na cantina da escola - foi um voltar aos meus tempos de secundário - e, como seria de esperar, de continuar o debate, na mesa, com quem se quis sentar ao meu lado. Falei com quatro pessoas - duas delas, particularmente jovens, o que não é de surpreender, visto que a esmagadora maioria do público presente estava entre os vinte e os trinta e poucos anos. Durante o tempo que comíamos, falamos de tudo, desde música e literatura, até questões mais políticas e sobre o evento, em si.
Estes momentos são sempre bons para criar laços e também para explorar temas lançados durante a parte mais formal do evento, de um modo mais fluido. Eu, particularmente, senti falta da possibilidade de o fazer, em vários momentos, excepto no debate da tarde em que participei.
Debates do primeiro dia
Após o almoço, retomaram-se os trabalhos, dividindo-se o público entre as quatro salas acima referidas - cada uma com um tema diferente. Os temas propostos sinalizavam a preocupação em analisar e debater a experiência LGBTQIA+ desdobrada nos seus vários aspectos; por outro lado, salientaram também - como poderão confirmar, abaixo, nos tópicos - como a luta LGBTQIA+ intersecta com as lutas de outras comunidades afectadas pelo preconceito.
Assim, na Sala Judith Teixeira o tema era “Agro Cuír: a luta LGBTQI+ no mundo rural”, com Xavier Simão e Pedro Fidalgo; já na Sala Variações, falava-se em “Racializar a luta queer”, com Lou Loução e Luísa Semedo; na Sala António Botto, por outro lado, o tema era “Como combater a gentrificação dos nossos espaços?” com Paulo Jorge Vieira e Gustavo Mourinho. Eu optei por ir à Sala Nava, onde o tema, conduzido por Paula Monteiro, do Clube Safo e por Duarte Santos, era “Desconstruir o género: além do binarismo”.
Apesar de ter tido pena de não poder assistir às restantes discussões, posso dizer que escolhi bem: pouco depois de a sessão ter começado, disrompeu-se logo tudo, alterando a disposição dos lugares - da característica unidirecionalidade de sala de aula (expectável pelo espaço em que decorreu o evento, aliás) para uma disposição das cadeiras - sem mesas - em círculo (disposição, essa, que foi expandido cada vez mais, ao longo da sessão, conforme mais pessoas se iam juntando, até haver uma ou outra pessoa, já em segunda linha). A discussão foi super-produtiva, super-agradável, muita gente saiu do seu «canto» para dar o seu contributo.
Daqui destaco, em particular, a vontade dos participantes binários em querer perceber melhor o tema, em querer ser informados sobre a não-binariedade - o que é extremamente positivo e me deixa, obviamente, esperançado.
Esta reivindicação por mais informação, aliás, alinha-se, inclusive, com a sugestão que deixei durante o debate da manhã, de o Bloco de Esquerda criar pequenos guias que pudessem ser descarregados, ajudando a esclarecer estas questões, sem estar à espera da validação do Governo - que, se for como este, mais depressa suprime - ou dos interesses Capitalistas que possam querer explorar esta necessidade, vendendo a informação.
Foi uma roda em que participei bastante e em que me senti particularmente acolhido, mesmo sendo alguém que fala de fora da experiência não-binária - o que demonstra que se pode falar do tema, ouvindo todos os contributos e sem se subalternizar ninguém - mesmo quem, não sendo da comunidade afectada, quer estar envolvido, tem informação relevante a partilhar, quer saber mais, etc.
Muitas vezes usa-se a figura do «lugar de fala» para inviabilizar, de modo passivo-agressivo, toda e qualquer participação daqueles com que não se concorda, chegando a haver algum bullying paternalista sobre aqueles que, de outro modo, poderiam tornar-se aliados - pelo contrário, hostilizando-os e perdendo-os para o movimento.
É preciso lembrar que “lugar de fala” é um conceito mal-entendido e não significa direito a ser o único interlocutor - significa apenas ter uma perspectiva sobre o tema. Algumas perspectivas, é claro, são em primeira mão; outras, em segunda; mas todas são importantes para desconstruir o problema. Sendo a exclusão um crime - se não judicial, pelo menos, aos meus olhos, moral - mal estaríamos se só pudessem falar as vítimas e os agressores e não se pudesse recorrer à figura da testemunha.
Faço esta ressalva, até, porque a Extrema-direita, no seu esforço de engenharia social, está bastante atenta a estas brechas e consegue roubar potenciais aliados, quando estes são hostilizados por um certo activismo demasiado pontificador, que se detém na discussão da vírgula, em vez de aceitar a intenção e o conteúdo e que parece mais apostado em fazer testes de pureza para escolher eleitos do que para trazer pessoas para o esforço colectivo da luta.
Cinema
O dia terminou com a exibição de dois filmes (duas curtas-metragens) numa das salas: “Mondial 2010”, de Roy Dib e “Homecoming Queens”, de Elias Ealkeem, duas abordagens distintas que exploraram a interseccionalidade entre a questão LGBTQIA+ e o drama da Faixa de Gaza - no primeiro caso, uma suposta viagem a Ramallah de um casal gay libanês (uma situação totalmente impossível, já que a entrada deles, no território, está bloqueada, sendo o filme - spoiler alert - uma ficção construída a partir de diálogos gravados sobre imagens enviadas por pessoas que estão fisicamente no local); o segundo, o caso de um activista que se apresenta às autoridades israelitas, vestido em drag, expondo-se à possibilidade de vir a ser preso.
No debate, conduzido por Hindi Mesleh e com a participação da activista Inês Simões (PATH), estes tópicos foram expandidos, permitindo questionar a narrativa da suposta inclusividade de Israel (limitada praticamente a Jerusalém e, mesmo aí, sob condições específicas), criada para estabelecer o contraste com o Conservadorismo Muçulmano e, assim, cooptar a comunidade LGBTQIA+ Ocidental contra a Palestina.
A questão da deglutição progressiva da Palestina pelos colonatos ilegais de Israel (ao ponto de a cidade, como diz o primeiro filme, não ter um museu), bem como - e aqui, já a propósito do segundo filme - o facto de a vida dos Palestinos estar profundamente vigiada e documentada, de uma forma quase distópica, também foram discutidas.
Inclusive, e por isso mesmo, falou-se de como os membros da comunidade LGBTQIA+ Palestina identificados são «alistados à força» como espiões do seu próprio agregado familiar por Israel, sob retaliação de lhes ser feito o outing forçado - o que, por sua vez, leva à desconfiança generalizada sobre as pessoas queer mais visíveis, por parte das pessoas da sua própria família.
E assim se encerrou o primeiro dia. Muito material para pensar. Houve quem ficasse também para jantar, mas eu não participei. Suspeito que as conversas que ocorreram ao almoço tenham prosseguido no mesmo tom. Mais tarde, a partir das 22:00 e até às 04:00, houve festa no bar Pharmacia, porque até o direito à diversão foi uma luta histórica da comunidade (aliás, é a partir do ataque aos bares que se dá Stonewall, lembremos).
Segundo dia
Talvez prevendo algumas ressacas, este dia foi ligeiramente mais curto e começou mais tarde; não teve discurso de abertura, tendo passado directamente para as discussões paralelas em três das quatro salas acima referidas, em que a interseccionalidade foi, mais uma vez, o fio agregador.
Debates do segundo dia
Na sala Judith Teixeira o tema era “A deficiência a sair do armário”, com Catarina Vitorino e Mara Pieri; na Sala Nava, “Queer sem idade”, com Ana Cristina Santos e Hélder Bértolo. No debate da terceira sala - que foi aquele a que assisti e em que participei - falou-se que “O livro é uma arma” com as escritoras Maria João Vaz e Ana Rita Almeida como convidadas - a primeira, por ser uma pessoa bastante conhecida do público português, que fez a sua transição de modo relativamente público e que a documentou num livro auto-biográfico (“Memória de uma epifania”); a segunda, na qualidade de uma autora cis de um livro para crianças (“Mamã, quero ser um menino”) escrito para contribuir para o esforço de esclarecimento e inclusão de pessoas trans.
Este debate obedeceu a um formato bem mais clássico, com bastantes perguntas feitas pela moderadora Jéssica Vassalo às convidadas - o que as motivava a escrever, como foi a sua experiência enquanto escritoras, a sua opinião do papel do livro para a luta da comunidade, etc.
A partir destes temas foi possível abordar questões como a inclusão performativa de pessoas trans nos media, normalmente reduzidas a aparições bidimensionais e curtas, meramente para conquistar o «carimbo» de inclusividade; por extensão, falou-se da decorrente dificuldade que as pessoas trans - em particular, as actrizes trans - têm de arranjar trabalho.
Ainda houve espaço para debater a perseguição e assédio moral de que escritoras - mesmo sendo cisgénero - que decidem solidarizar-se com a comunidade estão a ser alvo - que transcendem o incitamento ao ódio nas redes sociais (ainda que este mesmo se recubra de aspectos perturbadores e afecte, inclusive, o agregado familiar das visadas), passando facilmente para o offline. Mais uma vez aqui fica patente que o ódio é um problema sistémico e abrange uma esfera maior do que meramente a dos alvos declarados da Extrema-direita. Por outras palavras, afecta toda a sociedade.
Mais uma vez, o falhanço institucional dos espaços que acolhem o lançamento dos livros, das editoras e das próprias forças de segurança, que abandonam as visadas à escolha de permanecer, colocando-se em perigo, ou auto-censurarem-se, removendo-se elas dos ditos espaços - numa total inversão da lógica - recuperou o problema do preconceito institucionalizado, já em outros momentos do Fórum levantado.
Discussão do manifesto do evento
De volta ao auditório, Beatriz Realinho deu o mote para José Soeiro - o único homem que esteve neste palco, nos dois dias - falar um pouco sobre o fórum anterior e o manifesto entregue logo no primeiro dia.
O tema deste espaço era “Orgulho Crítico contra o pinkwashing da luta LGBTQIA+”. Soeiro explicou a expressão “Orgulho Crítico” como um contraponto ao orgulho performativo Capitalista, a que, aliás, já aludi, fazendo a ponte para com o primeiro fórum, de 2023, em que o pinkwashing, como disse, foi o tema central - e, inclusive, para a intervenção de Júlia Mendes, na abertura do primeiro dia. Entretanto, pressupondo ter havido uma leitura prévia do manifesto, o espaço foi aberto à colaboração dos presentes, para que este pudesse passar, numa forma mais completa, ao seu formato definitivo.
Lembro o que acima disse: este documento, representa as conclusões do evento, mas também o compromisso que o Bloco de Esquerda assume, nos próximos tempos, na sua acção política, no que toca à comunidade LGBTQIA+. Previsivelmente, o desafio lançado ao público activou-o bastante. Não obstante o documento já ter bastantes considerações, fiquei surpreendido com a quantidade de prismas diferentes trazidos à colação:
- falou-se da inclusão, no manifesto, do tema do envelhecimento queer;
- falou-se - ainda este problema - dos cuidados de saúde sem preconceitos e, nessa sequência, falou-se da terapia hormonal para as pessoas trans;
- falou-se na dimensão da experiência queer para lá da própria pessoa em si, mas também da teia de relações que esta estabelece à sua volta, por laços familiares ou de amizade, por exemplo;
- falou-se da questão da saúde mental e nisto, mais uma vez, numa visão mais holística, considerando a componente circundante e não se focando no sujeito (que é mais sintoma do que o centro do problema);
- falou-se do papel dos encarregados de educação enquanto facilitadores (ou não) da experiência queer e da necessidade de eles serem incluídos no manifesto - em particular, o que toca à sua alfabetização quanto a estas questões;
- falou-se na necessidade de levar mais a luta às escolas, sob todas as formas;
- falou-se do ataque da Extrema-direita à Academia, em particular através da sua «lista de terroristas», que já inclui três pessoas da área científica e de se dar resposta a isto;
- falou-se, por isso mesmo, também, na necessidade de haver mais investigação, mais Ciência, associadas à realidade queer;
- falou-se em reapropriação de conceitos cooptados e recontextualizados pela Extrema-direita;
- falou-se da importância do esforço das várias Marchas pelo país;
- falou-se da necessidade de «sair da bolha»;
- mas justamente por causa da enorme diferença que existe na experiência queer no interior, face à das grandes cidades, falou-se no isolamento de certas áreas, em particular - fruto de quem estava presente e falou de sua justiça - em Braga, no Algarve e na Madeira, em que falta muito do que já há nos grandes centros urbanos - inclusive, o simples respaldo numa comunidade activista maior, apelando-se, portanto à solidariedade e a uma maior participação nos esforços corajosos de quem aí, mais isolado, luta - nas respectivas Marchas, mas não só;
- falou-se em barreiras que impedem a participação mais juvenil e/ou mais informal;
- falou-se na gentrificação e como ela está também a destruir os poucos espaços queer, em especial, e mais uma vez, no interior - e o quanto isso expõe as pessoas LGBTQIA+ à violência;
- falou-se novamente da questão do Europride, não mencionada no texto e, por alargamento do tema, da interseccionalidade da luta queer e da luta anti-Capitalista;
- na mesma linha, falou-se na necessidade de cruzar as lutas queer com as lutas trabalhistas nos dois sentidos - ter a representação dos sindicatos nas Marchas, mas o inverso (isto é, a participação das pessoas LGBTQIA+ nos sindicatos), também;
- falou-se da preocupação com as pessoas LGBTQIA+ nas prisões;
- falou-se em preconceito institucionalizado e do combate contra ele, que deve estar explicitado no documento;
- falou-se em ir para lá da mera visibilidade e dos discursos;
- falou-se na necessidade de estabelecer medidas que não só reponham e façam avançar os direitos da comunidade, mas também de os proteger de forma mais segura e duradoura para futuramente se evitar o retrocesso que agora se está a ver.
O Bloco pediu contributos e obteve-os. Foi realmente maravilhoso ver que as pessoas presentes pensam sobre o problema e têm algo a dizer sobre ele, com todos estes pontos profundamente relevantes a serem levantados.
Fiquei agradavelmente surpreendido com a maturidade das temáticas propostas que, numa nota positiva, demonstra o quanto, passado aquele momento inicial em que se tentou conquistar o casamento igualitário, o direito à coparentalidade, algumas conquistas na saúde sexual, etc., tendo sido conquistadas, permitem agora entrarmos (ainda que sob um clima de ameaça) numa fase mais avançada da luta política queer.
Encerramento
Mariana Mortágua, ela própria, da comunidade LGBTQIA+ e líder actual do Bloco de Esquerda, fechou o evento. Dados os acontecimentos políticos relacionados com a suspeição de corrupção à volta do Primeiro-Ministro, ela ainda teve de dar uma declaração prévia aos jornalistas presentes. Terminado este desvio, ela dirigiu-se ao palco, onde proferiu o discurso de encerramento.
A tese que ela expôs procurou explicar como é que o Neoliberalismo - supostamente Progressivo - se encontra, surpreendentemente, com o Ultraconservadorismo (que lhe deveria ser, naturalmente, antagonista) na luta contra a diversidade, no que esta, pelo menos, for politicamente consciente, cristalizando-se em figuras como Musk, Trump, Miley e as restantes réplicas pelo mundo - incluindo, pressupõe-se, cá - fechando, claro, com o compromisso do Bloco de Esquerda de levantar esta bandeira por esta comunidade que está nas suas preocupações desde os tempos do PSR.
Nota final
Em tempos tão complicados como os que se avizinham, é importante perceber que há partidos que priorizam a defesa dos que mais estão a ser atacados, neste momento.
Foi particularmente relevante a forma coerente como a interseccionalidade desta luta com outras foi reafirmada a cada passo; essa atitude desmonta a tese - presente nos sectores mais Conservadores da própria Esquerda - de que acolher esta e outras lutas (intencionalmente apodadas de «fracturantes») não rouba nada à luta clássica da Esquerda - pelo contrário, expandem-na, complementam-na; as conversas tidas ao longo dos dois dias também demonstraram por que é que a hierarquização das lutas não faz sentido.
Foi particularmente enternecedora a atitude do Bloco de Esquerda ao ataque sem quartel que a Extrema-direita tem feito especificamente às pessoas trans e não-binárias, colocando-as, pelo contrário, no centro do evento, seja no staff, nos convidados, na agenda e até nos materiais - ilustrando aquilo que Catarina Martins disse na sua própria intervenção: “ninguém larga a mão de ninguém”.
Pontos para as homenagens dos nomes das salas mas, nesse ponto, deveria haver informação sobre quem eram essas pessoas. Talvez até haver exposições criadas sobre elas, para o público visitar.
Destaco a grande representatividade do público mais jovem (se calhar, pelo contrário, faltou a presença de gente mais velha, que também precisa de ouvir estas conversas) e o clima sossegado em que o evento decorreu, não obstante o ataque do Chega local.
Noto que a discussão poderia ser mais fluída: o medo de as pessoas se estenderem nas suas participações leva a que a cada pessoa só seja permitido falar por um intervalo de tempo demasiado curto, o que condiciona muito os contributos e a reflexão, não permitindo sequer diálogos entre posições diversas e levando, até, a equívocos (eu, que o diga…).
De futuro, talvez fizesse sentido haver mais actividades - mais filmes, actividades de team-building, etc. - até para atrair mais público. Faltou a presença de mais bancas, com mais coisas relacionadas com a comunidade. Quando me apercebi da banca do Centro GAT, por exemplo, só vi lá brochuras e contraceptivos. Na altura em que por lá estive não vi ninguém (o que não quer dizer que não tenha estado - apenas não vi).
Acho que é preciso pensar um pouco de forma mais alargada, estendendo o convite a mais empreendedores da comunidade LBGTQIA+ e penso que fez falta alguma coisa relacionada com o aconselhamento de saúde mental, essencial nesta fase da História.
Notou-se uma produção algo modesta - mesmo assim, o resultado foi bastante bom, com bastante profissionalismo e, tirando os ligeiros atrasos (que até foram úteis) tudo decorreu de acordo com o previsto.
E os restantes partidos? Têm alguma coisa que se possa ver? Convidem-me, que terei todo o gosto em aparecer, dentro das minhas possibilidades.
João Barbosa