Seria muito mais simples e inclusivo, que estejamos dispostas a questionar e a indagar conjuntamente sobre como as pessoas se identificam independentemente dos corpos que habitam, ou que possamos assumir que habitam através da sua expressão de género
No dia das Pessoas Não Binárias damos visibilidade a uma pessoa não binária que mora em Portugal para que nos conte sobre a sua experiência de vida, sobre o seu processo de evolução e que conselhos tem para outras pessoas com dúvidas, em questionamento ou simplesmente porque querem saber mais. Fomos falar com Navegante Estelar aka João Pedro.
dezanove: Quem é Navegante Estelar?
Navegante Estelar - também conhecida por João Pedro - é uma parcela de cosmos que se manifestou de forma física no corpo que habito, corpo esse que socialmente deu lugar a uma pessoa que se identifica (segundo as informações que tem à sua disposição actualmente) como pessoa trans-não-binária, poli-demi-sapio-pansexual. Habito este plano - nesta forma - há 32 anos do calendário gregoriano; nasci no Porto, no dia 2 de Março de 1990, mas não considero que pertença a essa cidade ou a outras onde tive oportunidade de habitar, por muito que delas goste, daí que quando me perguntam de onde sou, responda: Sou do Cosmos.
Navegante Estelar - também conhecida por João Pedro - é uma parcela de cosmos que se manifestou de forma física no corpo que habito, corpo esse que socialmente deu lugar a uma pessoa que se identifica (segundo as informações que tem à sua disposição actualmente) como pessoa trans-não-binária, poli-demi-sapio-pansexual. Habito este plano - nesta forma - há 32 anos do calendário gregoriano; nasci no Porto, no dia 2 de Março de 1990, mas não considero que pertença a essa cidade ou a outras onde tive oportunidade de habitar, por muito que delas goste, daí que quando me perguntam de onde sou, responda: Sou do Cosmos.
Ao longo da minha existência e durante as suas várias fases tive oportunidade de desenvolver estudos na área da nutrição, da espiritualidade, de algumas filosofias orientais, das quais destaco o budismo, o sufismo ou o jainismo; tive também oportunidade de estudar um pouco sobre os arquétipos e as histórias/estórias/vivências de personalidades associadas ao cristianismo, com especial pendor em figuras associadas à santidade. A sustentabilidade é também uma área (com muitas ramificações) sobre a qual me dedico há uns bons anos. A psicologia foi a área de estudos sobre a qual me debrucei durante a faculdade (UPT). Mais tarde iniciei um processo de formação profissional na área da Medicina Tradicional Indiana, e isso levou-me a aprofundar estudos na cultura e na história que subjaz esta forma de saber. Em 2018, voltei à formação profissional sob a forma de uma especialização ligada às áreas da Identidade de Género, da Orientação Sexual, da Cidadania e da Igualdade através da CIG, na FPCEUP; actualmente sou aluna de pós-graduação na primeira edição da Especialização Avançada Pós-Universitária em Intervenção Psicossocial Afirmativa com Pessoas LGBTQ+, no INSPSIC.
Neste momento existo e vivo em Lisboa; cidade que muito prezo dada a sensação de acolhimento e aconchego com que me recebeu e com que cuida de mim desde que para cá me mudei. Actualmente desempenho funções de asset manager numa multinacional ligada à tecnologia. Dos muitos sonhos que tenho destaco a vontade de poder vir a ver concretizadas no plano físico formas de estar e existir que permitam às pessoas serem quem são e ver mais vezes posta em prática a liberdade que fundamenta a nossa vida, dando lugar às utopias que se encontram por concretizar, guardo em mim também o sonho de vir a aprender línguas élficas. Os pronomes com que mais me identifico são os femininos e os neutros.
Quando é que te apercebeste que eras uma pessoa não binária? Como foi esse processo?
Dei-me conta da possibilidade de ser uma pessoa não-binária numa das aulas que tive na especialização sobre identidade de género que fiz em 2018, aos 28 anos, por conta de ter ouvido a pessoa professora a falar sobre não-binaridade. Em todo o rigor, foi um daqueles momentos em que senti que cronos parou o tempo; só consegui voltar à aula alguns momentos depois para levantar o braço e pedir uma explicação mais profunda sobre o significado daquela terminologia sobre a qual nunca tinha ouvido falar; até esse momento já teria por essa altura transitado sobre as possiblidades de ser uma pessoa "homossexual" (na altura era a terminologia que conhecia e hoje em dia está datada), ou gay (chapéu de chuva que nunca senti que me fizesse jus), ou pessoa transexual (que é também uma terminologia desadequada e que deve ser incluída na palavra Trans) que me levou cerca de dois anos a procurar compreender derivado dos questionamentos a que me sujeitei, mas entretanto percebi que não seria o meu caso dado que fui fazendo pazes com o corpo que habito e com as formas que este tem. Assim sendo a terminologia Não-Binária e mais tarde (acerca de dois anos) Trans-Não-Binária - cuja a afirmação é bastante recente - foi o lugar onde me passei a encontrar com maior conforto, sendo que tenho plena noção de que as terminologias e os sentires podem alterar-se e fluir para lugares distintos dos atuais dependendo dos rumos pelos quais for navegar adiante e os processos de "coming out" ou "letting in" pelos quais ainda vier a passar.
Quando é que te apercebeste que eras uma pessoa não binária? Como foi esse processo?
Dei-me conta da possibilidade de ser uma pessoa não-binária numa das aulas que tive na especialização sobre identidade de género que fiz em 2018, aos 28 anos, por conta de ter ouvido a pessoa professora a falar sobre não-binaridade. Em todo o rigor, foi um daqueles momentos em que senti que cronos parou o tempo; só consegui voltar à aula alguns momentos depois para levantar o braço e pedir uma explicação mais profunda sobre o significado daquela terminologia sobre a qual nunca tinha ouvido falar; até esse momento já teria por essa altura transitado sobre as possiblidades de ser uma pessoa "homossexual" (na altura era a terminologia que conhecia e hoje em dia está datada), ou gay (chapéu de chuva que nunca senti que me fizesse jus), ou pessoa transexual (que é também uma terminologia desadequada e que deve ser incluída na palavra Trans) que me levou cerca de dois anos a procurar compreender derivado dos questionamentos a que me sujeitei, mas entretanto percebi que não seria o meu caso dado que fui fazendo pazes com o corpo que habito e com as formas que este tem. Assim sendo a terminologia Não-Binária e mais tarde (acerca de dois anos) Trans-Não-Binária - cuja a afirmação é bastante recente - foi o lugar onde me passei a encontrar com maior conforto, sendo que tenho plena noção de que as terminologias e os sentires podem alterar-se e fluir para lugares distintos dos atuais dependendo dos rumos pelos quais for navegar adiante e os processos de "coming out" ou "letting in" pelos quais ainda vier a passar.
Que liberdade sentes ao expressar-te da forma como fazes?
A forma como expresso íntima, pessoal e socialmente quem sou lembra-me muitas vezes que ao fazê-lo estou a impactar direta e indiretamente as vidas e existências de tantas outras pessoas que vivem ao mesmo tempo que eu vivo, que honro as de quem veio antes de mim e que planto sementes para as que vierem depois; creio muitíssimo que uma relação sã, íntegra e profunda consigo mesme e com quem se é, tem efeitos em toda a rede de ligações/relações nas quais nos movemos, e nesse sentido, quanto mais se habitar um lugar de resolução interna e externa, melhor e mais manifestado é o potencial da sociedade que se constrói a cada momento.
Enquanto pessoa não binária que dificuldades sentes no teu dia-a-dia? Questões concretas como: situações laborais, em questionários, em lojas, em serviços públicos, etc.
Noto as principalmente no que toca àquilo que se conhece nos dias de hoje como "misgendering" e aos caminhos problemáticos onde pode levar como o da disforia de género, a título de exemplo.
Aborrece-me profundamente que ainda se continue a perpetuar a noção de se inquirir o género ou o sexo em questionários, preenchimento de inquéritos, fichas de identificação e outros formatos semelhantes, principalmente quando essa informação é completamente irrelevante para a situação; o mesmo sucede quando se trata de dados de saúde, sendo que tendencialmente apenas contemplam opções de preenchimento binárias e que isso levanta imensos problemas na hora de aplicar ou diagnosticar determinadas situações.
Aborrece-me profundamente que ainda se continue a perpetuar a noção de se inquirir o género ou o sexo em questionários, preenchimento de inquéritos, fichas de identificação e outros formatos semelhantes, principalmente quando essa informação é completamente irrelevante para a situação.
Mas a questão com que mais me debato é a incapacidade para a qual a maioria de nós está condicionada (utilizarei sempre pronomes femininos quando estiver a falar de pessoas no plural) e os graus de privilégio (ou escassez dele) que de imediato se atribui a quem está diante de nós de acordo com o sexo, género ou identidade que se assume que alguém tem, sem que isso seja questionado - dado que com frequência pode não corresponder e ser gerador de muitas problemáticas para as quais muitas vezes não há disponibilidade ou cuidados acessíveis.
No meu caso específico, é frequente as pessoas que não me conhecem ou que são resistentes, atribuírem-me o género masculino como forma de facilitar da sua interação para comigo, independentemente da expressão de género não concordante que têm diante de si; tenho plena noção de que isso acontece devido ao desconhecimento que possam ter em relação a estes assuntos e ao conforto social do qual não querem prescindir (consciente ou inconscientemente).
Seria muito mais simples e inclusivo, em detrimento do condicionamento social, do comodismo e do facilitismo que este movimento veicula, que estejamos dispostas a questionar e a indagar conjuntamente sobre como as pessoas se identificam independentemente dos corpos que habitam, ou que possamos assumir que habitam através da sua expressão de género.
Seria muito mais simples e inclusivo, em detrimento do condicionamento social, do comodismo e do facilitismo que este movimento veicula, que estejamos dispostas a questionar e a indagar conjuntamente sobre como as pessoas se identificam independentemente dos corpos que habitam, ou que possamos assumir que habitam através da sua expressão de género.
Se isso não te perturbar podes expor algum caso de discriminação em concreto que tenhas vivido?
A discriminação é em várias medidas constante dado que muitas vezes não me apresento socialmente - segundo um olhar externo ao meu - como seria expectável que um corpo como o que habito se apresentasse, portanto é um assunto que venho vindo a desconstruir e sobre o qual me tenho vindo a debruçar para que me impacte cada vez menos, dado que compreendi que não estou disponível para diminuir a minha expressão pessoal em favor da manutenção de estruturas e posturas sociais com as quais não quero compactuar por toda a repressão que exercem sobre quem não conforma com as expectativas.
Num sentido prático, lembro-me de uma vez estar acompanhada de um amigo (identifica-se como homem gay/queer e com pronomes masculinos), numa volta a casa e de termos sido abordadas por uma pessoa, no metro, que procurou ridicularizar a nossa existência lançando palavras jocosas e desagradáveis no nosso sentido, fazendo sentir nitidamente desconfortáveis não só nxs, mas também muitas das pessoas que estavam ao nosso redor.
Tire-se da ideia que o proconceito e a discriminação afeta e impacta exclusivamente as pessoas que possam pertencer ou identificar-se com a comunidade/coletivo LGBTQIAPN2+; isso é uma falácia que precisa de ser desconstruída dadas as consequências nefastas que tem para a sociedade e para a manutenção de discursos opressivos.
Que recomendações farias a entidades públicas para sensibilizar as pessoas para o não binarismo de género?
Creio que a educação é uma das grandes chaves que temos à nossa disposição neste momento - como o é também em relação a muitos outros temas (idadismo, capacitismo, sustentabilidade, xenofobia, racismo, feminismo, política, economia, entre tantas outras áreas) - portanto ter esta forma de conhecimento e de existência, assim como a variedade de conceitos que lhe dão corpo (agénero, género-fluído, género-não-conformante), disponível de forma ampla, desconstruída e desestigmatizada, nas escolas, nos colégios, nas faculdades, nas empresas (privadas e públicas), nos colectivos locais, associações, centros de cultura será sempre um óptimo movimento de mundo que tornará a sociedade muito mais inclusiva, agregadora e integradora da real diversidade que nos constitui. Sendo que com isso muitas mais de nós poderiam habitar-se com muito menores índices de trauma, dor e dificuldade e poderíamos contribuir genuinamente para formas de estar muito mais sãs e dirigir recursos para outras áreas nas quais sentíssemos carência (diminuição de desigualdades sociais, investimento em estruturas de energia renovável - genuinamente acessível, doença mental, saúde preventiva).
Creio que a educação é uma das grandes chaves que temos à nossa disposição neste momento.
Que conselhos darias a jovens que se questionam sobre esta matéria neste momento?
Diria que procurassem dirigir os recursos que possam ter disponíveis para os questionamentos e para os medos que possam sentir em relação a este assunto - que tratem as partes de si que se manifestam em formas de medo como amigos que precisam de atenção e de aprofundamento para se poderem compreender as razões pelas quais têm impacto - de forma a poderem navegar as suas existências com menores níveis de ansiedade e receio de não pertencer, e que evitem suprir as suas necessidades e carências com comportamentos e hábitos que possam causar adição ou que possam diminuir a existência de outrem para que com isso possam sentir-se num lugar que não é seu ou que não ocupam.
Sugiro também que se procure auxílio sempre que se considerar necessário junto de associações ou pares em que se confie, e que possam compreender realidades que transcendam a sua de forma a terem perspectiva sobre o movimento de outrem no mundo e com isso compreender-se a si e à sua existência com mais profundidade.
Entrevista de Paulo Monteiro