Sobre os insultos no Luneta dos Quartéis
A meados do mês de Julho, o espaço de cruising Luneta dos Quartéis foi invadido por grafites e publicações com insultos homofóbicos. Para o comum dos heterossexuais o conceito de cruising pode parecer um choque ou até um atentado ao pudor, mas na realidade, o cruising é, e sempre foi, parte da comunidade homossexual, principalmente nas épocas históricas quando a homossexualidade era considerada crime e punida por lei, tanto a nível nacional como internacional. Mas o cruising rapidamente ultrapassou a barreira da necessidade para também se tornar uma forma de prazer sexual admitida tornando-se uma prática comum.
No tempo da ditadura, e mesmo durante muito tempo após o 25 de Abril, quando não havia redes sociais, os locais de engate em reclusão eram comuns, como urinóis e jardins, para além de bares e cafés, onde se tentavam conexões de cariz mais social mas maioritariamente acessíveis a indivíduos com um certo privilégio. A exclusão, a discrição e a discriminação levavam (e ainda levam) muitos homens que buscam sexo com outros homens a procurar libertar tensão sexual reprimida em locais escondidos, onde o objectivo do prazer exclui qualquer outro tipo de comunicação e possibilita o anonimato. António Serzedelo, fundador da associação Opus-Gay, actualmente Opus-Diversidades, recorda no livro “Histórias da Noite Gay de Lisboa”, do jornalista Rui Oliveira Marques, que quando alguns desses locais, como os urinóis do Campo das Cebolas e do Campo Pequeno, foram encerrados pelo governo, Ary dos Santos e Cesariny “foram lá pôr rosas vermelhas, em homenagem de saudade ao que lá se tinha passado.”
Com o avançar do tempo, a evolução de direitos e o aparecimento de dispositivos e aplicações de encontros online, o cruising perde o contexto de necessidade e ganha o contexto de fantasia sexual, existindo alguns locais onde a sua prática se torna mais frequente. O Luneta dos Quartéis é um desses espaços que, para além de se encontrar em elevado estado de degradação, permite aos frequentadores usufruir dum ambiente praticamente oculto. O cruising é uma prática sexual comum e aceitar esta afirmação é importante para poder defender os direitos da comunidade. Seja definido pela necessidade ou pela adrenalina, o cruising não tem propriamente regras, sendo caracterizado pelo ato em si, uma conexão fugaz, espontânea, medida pelo imediato e por acções que apenas podem ser definidas pelo momento em que é praticado.
Encontrar no Luneta pessoas fora da comunidade não é de todo inconcebível, até porque se trata dum local público, sem restrições de acesso e provavelmente convidativo a adeptos da natureza e de locais abandonados. Muitos são os espaços que lentamente perderam a conotação com o cruising, ou onde este se reduziu drasticamente, devido a intervenções externas à comunidade, nomeadamente, protestos como este. No entanto, não deixa de ser curioso que um espaço tão vasto como Monsanto, onde os transeuntes heterossexuais podem escolher vários pontos de passeio, tenha de (mais uma vez) ser reclamado para a maioria - como se de gentrificação se tratasse - enxotando de novo os “gays” para outro sítio escondido e assim assegurar passeios sem incómodos. Contudo, sublinhe-se que o Luneta é um edifício abandonado, degradado e inseguro do ponto de vista da sua estrutura, com cantos escondidos onde não é sequer expectável um passeio.
Considerando que foram a vergonha, o receio das autoridades e o secretismo os principais impulsionadores do início da prática cruising. encontrar folhas A4 com as palavras “vergonha” e “onde está a polícia” afixadas pelo espaço é, no mínimo, irónico. Tempos houve em que ser queer era sinónimo de vergonha e reclusão, indivíduos varridos para o secretismo e a solidão. Se há algo que estes insultos mostram é que essa homofobia ainda está muito presente por parte de “pais, moradores preocupados” para quem, pelos vistos, o Luneta é um local ideal para moradores e famílias. E também, como não deixa de ser usual, recorrendo imediatamente ao insulto como forma de protesto.
Fazer as coisas às escondidas para não ferir a susceptibilidade da comunidade heterossexual não é de todo novidade. O Luneta é apenas mais um espaço escondido dos poucos espaços que resistem, que vão perdendo o seu encanto de reclusão, quer pela invasão externa, quer por fecho ou até pelo próprio descuido de quem os frequenta. Não será demais lembrar aos utilizadores que uma forma de manter o espaço fora do alvo de ataque e assim o proteger dessa ameaça exterior, é igualmente mantê-lo limpo e cuidado. Independentemente do que aconteça, o cruising não vai desaparecer e irá sempre encontrar novos espaços ocultos e secretos para os seus praticantes.
Carlos T. Lopes, realizador e criativo