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Nem na mata se encontram histórias assim

Sou médico e sou homossexual

 

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Sou médico e sou homossexual. Sempre quis ser médico e sempre me senti homossexual. Cresci com um pai e uma mãe. Maravilhosos, esforçados, dedicados a mim e ao meu irmão mais do que a qualquer outra coisa na vida. Também existiram avós, tios, primos e primas e se alguma coisa toda esta gente me ensinou foi o que era o amor e o que significa ter uma família. Tive a sorte de não conhecer nenhuma das realidades do abuso – o físico, o sexual, a negligência... Enquanto criança brinquei com carrinhos de metal, joguei à bola no recreio da escola, meti-me em lutas com os outros rapazes e explorei os primeiros afectos com as meninas no famoso jogo do “bate-pé”!

 

Desde o primeiro dia de escola que fui um exemplo de sucesso escolar – pelo menos naquilo que o nosso paradigma de escola considera sucesso – nunca tive uma negativa. Fiz todo o meu percurso desde o 1º ano de escolaridade até à obtenção do grau de especialista em Neurologia sem perder um único ano. Na adolescência decidi contar sobre a minha homossexualidade a alguns amigos – fui apoiado e protegido. Já a estudar medicina decidi contar a todos os amigos. Continuei apoiado e protegido. Quando revelei à família, nada de novo – apoiado e protegido!

Já tive amores e desamores. Paixões intensas, outras fugazes. Já namorei e fui feliz, já fui abandonado e também já abandonei. Já partilhei casa e o resto da vida com um grande amor e já conheci o gosto amargo da separação. Nunca sofri de doença mental. Nunca fui diagnosticado com nenhum desvio da personalidade. Nunca tive nenhuma dificuldade de adaptação a ambientes diferentes. Nunca precisei de terapia ou acompanhamento psicológico. A minha homossexualidade nunca foi um factor de sofrimento para mim.

Pratico desporto federado. Na minha equipa existem outros homossexuais mas a maioria são rapazes heterossexuais. Partilhamos balneários e quartos quando vamos para fora em competição. Nunca senti nenhum tipo de exclusão. Nunca a partilha da nudez foi um problema. Nunca a partilha das nossas histórias de vida, amores, sexo ou afectos vários foi um tabu.

Trabalho no Serviço Nacional de Saúde, com uma equipa que me conhece bem. Nos intervalos do trabalho falamos das nossas vidas familiares, das dificuldades, dos filhos, das férias, da casa em obras... nada é tabu, eu não sou tabu, a minha vida amorosa não é tabu. A dos outros também não.

Queira alguém explicar-me a “anomalia” na minha vida? Alguém me aponta critérios de diagnóstico para desvio da personalidade? Devo fazer “terapia de reconversão”? Para mudar o quê exactamente? Se para a medicina, a anomalia implica sofrimento (caso contrário é apenas uma variante), onde está o meu sofrimento?

Mas existe uma anomalia sim. E essa anomalia reside no facto de toda esta minha história ser pouco frequente. Para a maior parte dos homossexuais ou pessoas transgénero, não existe uma história de “felicidade” e “integração”. Existe discriminação, preconceito e invisibilização. Existe sofrimento – mas esse sofrimento não vem de dentro, vem de fora. Vem dos outros. De famílias destruídas pela homofobia e pela transfobia. De exclusão e “bullying” na escola. De dificuldades acrescidas no emprego. De isolamento social. E também dos médicos. Que fingem não serem influenciados pela orientação sexual ou identidade de género mas denunciam-se constantemente nos comentários, nos olhares, nas atitudes. Sempre que recusam falar com o seu utente sobre a sua vida familiar, mesmo sabendo que ela faz parte da história que têm de colher. Quando escolhem inconscientemente não conhecer, não se informar sobre questões especificas da saúde de cidadãos LGBT (porque elas existem, ponto final). Quando fingem aceitar os seus colegas homossexuais mas na verdade o que esperam é que eles estejam “caladinhos” e não falem sobre a sua vida privada (afinal aquilo é trabalho...) mas passam os dias a falar sobre os seus casamentos, os seus filhos ou a fazerem comentários obscenos sobre as médicas ou enfermeiras mais jovens. Quando assumem dentro de um bloco operatório ou de uma sala de aulas da faculdade que todos os presentes são, obviamente, “normais” e deixam escapar o comentário sexista e homofóbico. Quando assumem à partida perante um doente homem que ele tem uma namorada ou esposa e que uma mulher terá, com certeza, marido.

A história já nos demonstrou que, por vezes, a anomalia não está no indivíduo mas sim na sociedade. Lembram-se do Holocausto? Do genocídio no Ruanda? Da PIDE? Da escravatura?

Mais grave do que esquecer a história é fechar os olhos ao presente. E fazer de conta que esta onda de revanchismo contra os direitos dos seres humanos e o suposto “politicamente correcto” que se apoia na tão auto-elogiada liberdade de expressão, foram o rastilho de pólvora que se acendeu nos Estados Unidos e que culminou na eleição de um presidente chamado Donald Trump.

 

Bruno Maia, médico

 

 

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