A última carta ao meu pai é a mais recente criação teatral de Peter Pina. Com estreia marcada para dia 8 de Maio, no Auditório Carlos Paredes, em Lisboa, a peça promete abordar temas transversais a todas as pessoas queer. O dezanove.pt foi conversar com o autor.
Estávamos no verão de 90, de uma vila desenhada, exactamente no meio do nada. Os pedais da bicicleta avançam num sorriso por descobrir. Se não tivesses esse teu jeito, até eras giro. Disse a Teresa sobre os trejeitos da bicicleta dele. A bicicleta não percebeu o que é que aquilo queria dizer. Antes do Verão terminar, Ele guardou-a na garagem. Ele tinha ouvido os rapazes da escola dizerem que lhe iam tirar a bicicleta. Vamos tirar-te a bicicleta. Disseram eles. Vamos tirar-te a bicicleta. As rodas rodavam à velocidade da roda do sol. Os pés adolescentes fundiam-se nos pedais, como se o seu corpo fizesse parte desse instrumento de fugir com duas rodas.
Escrevo-te do futuro, com o coração cheio de ternura e compreensão por tudo o que estás a viver. Eu sou tu, muitos anos depois, mas hoje quero falar contigo como se fosse um amigo que te conhece profundamente, um amigo que sabe de cada sorriso, cada lágrima, cada momento de alegria e cada instante de dor que te atravessaram.
A primeira vez que me apaixonei, tinha 14 anos. 14 anos. Eu tinha 14 anos. Aos 14 anos eu já sabia que era gay. Aos 14 anos, eu já sabia tudo. A ventoinha no chão. O calor. Os pés que sentem a frescura da roda que roda e gira. Um velho gira-discos. Encostado à parede do lado direito do sótão, está um móvel antigo que abraça um velho gira-discos. Conta histórias. Contar-me-ia se pudesse, muitas histórias. Falar-me-ia da viagem da Alemanha. Das festas de emigrantes. E dos discos. Bee Gees. Bob Dylan. Paul Simon. The Rolling Stones.
Uma carta. Não é um email. Não é uma mensagem. Uma carta. Um manuscrito num envelope, daqueles que encontramos dentro da caixa do correio, depois de ouvirmos, é o carteiro. As minhas mãos abrem o envelope. Sei que gostas de Madredeus e adoras o mar. Eu não reconheço aquela letra torta e envergonhada. A carta estava na caixa do correio. A carta não tem remetente. Uma carta sem remetente, não espera resposta. Sei que gostas de escrever e de ficar deitado no chão. As minhas mãos sentem o tacto de cada um daqueles caracteres. Quem é o misterioso escritor de cartas? Como é que tem a minha morada? O que é que pretende de mim?
Hoje partiste-me um copo. Não gosto de copos partidos. Os copos existem inteiros. É assim que se diz. É assim que tem de ser. Estou sentado. Estou sentado à mesa. Olho o copo. Está partido. Hoje partiste-me um copo. Um copo quebrado é um copo enfermo. Posso curá-lo, mas jamais será inteiro. Quero salvá-lo. Vou salvá-lo. Salvo-o. Guardados num saco, os cacos despedaçados são depositados na mesa. Estou sentado. Na mesa está o copo, os cacos e a cola. A operação principia. Luvas brancas. De luvas brancas, as mãos são duas pinças que operam meticulosamente esta cirurgia. O sangue. O sangue escorre-me das mãos.
Um raio de luz caminha em pés de lã pelo quarto. Os lençóis emaranhados escondem-se no lusco-fusco. A cama adormecida protege uma massa de dois corpos colados. Umas mãos seguram um tabuleiro decorado com comida. Bom dia, meninos. A voz da tua mãe abraça-nos. Depois do pequeno-almoço, desçam. Sim, mãe. Dizem os teus braços enquanto seguram o meu corpo no teu. Estamos em Abril. Somos namorados há quatro meses. Não quero sair desta cama. Não vou sair desta cama. Não saio desta cama. Nesta cama dorme o amor.
A alegria do corpo dança-lhe na pele. No centro da sala, a luz acende-se. Suavemente o som invade a casa. É dia de ensaio. O movimento das pernas esguias atravessa o espaço. Os seus cabelos rodopiam. As saias largas e compridas esvoaçam, contaminando de contentamento, todos os espectadores.
A corda tem dois lados. A corda é a medida da força. As mãos seguram a corda com força. As mãos não a largam. Agarram-se a ela, como quem se agarra a um último suspiro de vida. De um lado estão eles. Do outro estamos nós. Os pés tropeçam em pés, que as mãos seguram. Vamos cair. Aqui ninguém cai. Não te deixo cair. Os corpos são esticados. As costas são curvas. Os braços são linhas estilizadas no ar.
As palavras têm poder. A força de uma palavra provoca um murro no estômago. As palavras que não conhecemos são vazias. Ecoam como uma folha branca de papel em nós. Ele tropeçava em palavras. Tropeçava em palavras que desconhecia. O desenho das letras era-lhe familiar.
Uma fotografia é uma história de vida. Uma fotografia é uma história de família. Nesta casa existe uma parede vazia. Nas mãos vejo um martelo. Na parede é pendurada uma moldura. Ao fundo vejo o mar. Sentados nas rochas, vejo quatro corpos. Existe um corpo de um homem. Existe um corpo de uma mulher, com uma menina ao colo. E existe um menino com um boneco vermelho na mão. Como é que se chama esta fotografia? Como é que se chama esta família? Quantas fotografias é que existem?
Um abraço é a forma humana mais perfeita que existe. Os corpos encaixam um no outro. Sentem o cheiro um do outro. O calor. A vulnerabilidade. O medo. Num abraço silencioso dizes absolutamente tudo, sem desperdiçar uma única sílaba. O que precisamos é de mais abraços. Algures no tempo, alguns de nós sentimos a fragilidade nos braços, sem que do outro lado tivesse existido um conforto. A comunidade LBGTQ+ precisa abraços.
Quando olhamos para uma família de gotas de água, que reflectem os raios de sol que as atravessam, vemos o arco-íris. Conheço bocas que o chamam de arco-da-aliança, arco-celeste ou até o arco-da-velha. Na semana passada, reparei numa montra de uma loja decorada com vários produtos pintados de arco-íris. A loja com a vaca à porta.
Ela, poderia ser qualquer um de nós. Ela é qualquer um de nós. Para nós, será Ela. O sistema é um jogo, constituído por blocos, níveis, etapas. Ela entra no jogo. Ela quer entender a psique humana. Sempre sentiu atracção em compreender o interior dessa caixa tão complexa e tão interessante. “Compreender a mente humana é algo complicado. Cada indivíduo é único. Cada mente é única. Cada pessoa é composta por um conjunto de acontecimentos que o vão moldando. Acontecimentos que provocam reacções, também estas distintas entre si.”
Se não tivesses esse teu jeito, até eras giro. Disse ela. Os calções curtos faziam avançar uma mistura de bicicletas. Estávamos no verão de 90, de uma vila desenhada, exactamente no meio do nada. O sol despe-nos o corpo e a alma. Existe uma espécie de carta escrita com tinta de felicidade e envelope de alegria. Vivíamos num tempo, com muito tempo para esperar pelo carteiro e pelas respostas.