Transfake: Não nos apaguem!
Podemos sorrir. Um bocadinho, pelo menos. Hoje conquistámos mais um pouco do direito à existência. A pulso. Ainda tem de ser a pulso.
A personagem Lola na peça “Tudo Sobre A Minha Mãe” de Daniel Gorjão será de agora em diante interpretada pela actriz trans Maria João Vaz.
Escrevo agora para os (muitos, demasiados) que não entenderam a nossa luta. O preconceito parte muito do desconhecimento, sim, e dos lugares de privilégio também. É que aos olhos de uma camada (tristemente) substancial, os nossos protestos são apelidados de histeria, rebeldia infundada, capricho, circo.
O preconceito parte muito do desconhecimento, sim, e dos lugares de privilégio também.
Contra mim falo. Sou tantas vezes mais uma no processo de aprender a ser melhor do que já fui. Estamos todos a tentar evoluir. Só que uns (muito!) mais devagar do que outros, pela sua própria recusa e impermeabilidade. E nem todos temos tempo para esperar.
Hoje foi um desses dias em que tive de aprender a ser melhor. Já me tinha expressado publicamente sobre isto. O transfake - representação por parte de actores cis de personagens trans, pratica redutora que promove a invisibilidade e a não igualdade de oportunidades para as pessoas trans na representação das suas próprias narrativas, bem como o apagamento das identidades trans e não-binárias quando perspetivadas como apenas uma questão de caracterização e não de existência, tal como o blackface – não pode continuar a acontecer.
E não, não se trata de actores cis só poderem representar papéis cis e actores trans papéis trans. Não se trata de uma divisão. Nem de escolhas de elenco, nem do que significa afinal representar. Trata-se de justiça. Pessoas cis não vêem permanentemente as suas identidades apagadas, não precisam de reclamar os seus direitos, não precisam de apelar à visibilidade, ela já existe. Ninguém precisa de criar um personagem sobre a existência cis. As pessoas cis muitas vezes nem sabem o que significa serem cis, não precisam de saber, não precisam de lutar. A existência trans (injustamente, ainda) é uma luta. Tem de ser uma pessoa trans a representar um papel trans porque se trata de representatividade, porque se trata de deixarem que existam, de deixarem que ocupem o espaço que é seu. Sobretudo se querem trabalhar sobre as questões trans, que o façam junto da comunidade, que apoiem as pessoas trans. É simples. Tal como finalmente percebemos (e demorou demais!) que o blackface não pode acontecer, que para representar personagens racializados existem actores racializados. O que não quer dizer que actores racializados não possam interpretar personagens que não incidam sobre esta questão, isso sim era segregação, mas entendemos que um actor branco pintar a cara e fazer sotaque é ofensivo e perpetua estereótipos.
As pessoas cis muitas vezes nem sabem o que significa serem cis, não precisam de saber, não precisam de lutar.
Seguindo a mesma lógica: o transfake não pode continuar. Disto não tive dúvidas, embora nem sempre tenha sido assim. Lembro-me por exemplo de quando vi “A Rapariga Dinamarquesa” (outro exemplo de casting transfake) ter adorado o filme, foi profundamente marcante, nem sequer me questionei na altura. Tinha 20 anos, ainda me estava a descobrir a mim, não sabia melhor. Não tinha consciência. A evolução da consciência será sempre um processo, haverá sempre muito mais por fazer. É essa mesma evolução que me leva a escrever este texto.
Hoje foi um desses dias de aprender a ser melhor, dizia. Quando vi o vídeo da acção anti-transfake ontem no Teatro S. Luiz, onde Keyla Brasil, actriz e performer travesti brasileira ocupa o palco aquando da entrada do actor André Patrício em cena como protesto, pensei “Isto não pode acontecer. Não pode ser assim desta forma. Não é assim que nos vão ouvir. Vão-nos chamar de arruaceiros. Vão dizer que não podemos exigir respeito se não respeitamos. Vão ser transfóbicos e dizer que estamos só a fazer circo, como dizem sempre.”. O vídeo ainda mal tinha começado. E atenção que eu tinha planeado tentar ir à manifestação de Domingo, estar junto da Lila e de todos/as/es, era necessário e realmente importante. O conteúdo da defesa nunca esteve em questão para mim. Mas enquanto isso pensava “Eu sou poeta, não posso concordar, sou pela palavra, pela diplomacia e sensibilização.” Ainda não a tinha ouvido. Apenas vi uma pessoa a invadir um palco a meio de uma peça. Nem sequer a ouvi e para mim isto já estava errado. Ela tinha razão, mas assim podia perdê-la porque ia ser mal vista.
Nem vi que já a estava a silenciar, sem a entender. Só quando parei e decidi ouvir Keyla, com calma, é que me apercebi que nem me dei conta, estava a partir do meu lugar de privilégio… É que eu, mesmo entendendo a sua luta como artista e activista queer e não-binária, não sou uma actriz a quem a sociedade cis-sexista e heteronormativa negou o lugar, até para representação da sua própria narrativa. Não precisei de me prostituir, não tive um revolver apontado na minha cara. Entendo a luta, faço parte dela, mas ainda me dou ao luxo dos poemas e da dialética. E fui injusta no meu raciocínio. Porque nem sempre há tempo para ser diplomata. Nem sempre a luta se faz só de escrever canções. Também são precisos o grito e a coragem, às vezes tanto ou mais.
Assim que decidi parar, ouvir, deixar de lado a minha redoma e entender o lugar dela, não tive como não aplaudir. A nossa luta é a mesma, eu só tive a sorte de nunca ter precisado de gritar. Ou de poder ter o conforto de gritar de outra forma. Só que convém não esquecer que isto só acontece porque outros antes de mim não tiveram medo de partir para a acção. E o meu lugar é ao lado deles. Nem que seja dando-lhes a mão na minha maior força: escrevendo. O maior poeta será sempre aquele que o é na própria vida. Foi isso que aconteceu aqui.
Partem dos seus próprios pressupostos enraizados e dos seus lugares de privilégio, antes de ouvirem e de se permitirem pensar, pensar verdadeiramente e colocar-se no lugar do outro.
Felizmente decidi parar e entender. Caso contrário ia ser como eles. Os que apagam a minha existência de pessoa queer, não-binária, com deficiência, não-estética, não-conformada, não-normativa. Foi esse despertar que me levou a expor o meu próprio processo. O que se passa com a sociedade é também isto. Partem dos seus próprios pressupostos enraizados e dos seus lugares de privilégio, antes de ouvirem e de se permitirem pensar, pensar verdadeiramente e colocar-se no lugar do outro. A cultura só evolui enquanto reflexo de uma sociedade que tem de começar no indivíduo, um a um. Haja mais quem se observe e se detenha e decida fazer melhor – podemos sempre aprender, não tem de haver vergonha nisso – haja mais Keylas, poetas que o são de verdade. Quanto a mim, tentarei lá ir chegando.
Inês Marto