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Uma história queer da Eurovisão em 5 canções: do armário à (quase) normalização

eurovision dana international

Na semana mais eurovisiva do ano, mergulhamos no passado de um evento seguido por milhões de pessoas LGBTQIA+ em todo o mundo. Se estivéssemos na primeira edição da Eurovisão em 1956 nunca sonharíamos que, seis décadas depois, esse evento se tornaria numa das grandes referências culturais queer. Contamos-te em cinco canções-chave como essa história foi construída.

A idade do armário: “Nous les amoureux” (1961)

Recuamos às primeiras edições da Eurovisão, ao tempo do pós-Guerra, da reconstrução do continente. Com a Europa a entrar na década dos hippies, da libertação sexual e dos Beatles, a canção do Luxemburgo na sexta edição do festival parece estar em contracorrente, ao falar de um amor proibido pela religião e censurado pela sociedade. A letra diz assim:

Nós, os amantes – eles querem separar-nos. Querem impedir que sejamos felizes. (…) É verdade, os idiotas e os maldosos ferem-nos, são cruéis. Mas nada é mais certo que o amor. Nós, os amantes, não podemos nada contra eles. Eles são mil e nós dois, os amantes. Mas chegará a hora, nas noites menos difíceis, em que te poderei amar sem que disso se fale na cidade.

Jean-Claude Pascal, o seu intérprete, confirmará mais tarde que a canção trata, de facto, de uma relação homossexual. “Nous les amoureux” vence o festival mas pouco tempo depois é esquecida. Com ela ficam também fechadas no armário, durante muitos e longos anos, as questões LGBTQ. 

Nos bastidores, a geração que cresce com a Eurovisão vive o festival em toda a sua pluma e lantejoula. Em festas privadas de amigos que se juntam para assistir o evento, nos bares, ou em frente ao espelho no quarto, montam-se festas onde passa “Puppet on a string”, “Waterloo”, “Ne partez pas sans moi", e outros clássicos intemporais. Mas ainda é cedo para falar de um evento gay, ou queer. Aliás, em muitos países (como Portugal) estamos ainda num tempo em que o activismo LGBTQ está a dar os primeiros passos, a construir estruturas e a reclamar as ruas pela primeira vez. A comunidade está a passar da teoria à forma, e da forma à prática, e consegue ver no palco da Eurovisão um grande ponto de encontro.

 

O coming out: “Diva” (1998)

Quase a entrar no novo milénio, a cantora trans israelita Dana International vence o festival. A sua escolha como representante de Israel tinha sido contestada por grupos de judeus ortodoxos e por políticos conservadores. Mas esta vitória projecta Dana e converte-a numa das pessoas LGBTQ mais conhecidas no espaço mediático. “Diva” canta a natureza divina da mulher e o refrão nomeia um panteão de figuras femininas, mitológicas e históricas, que todos aprendemos a cantar de cor.

Há um antes e um depois de Dana – 1998 é o “ano zero” da Queerovision, a verdadeira chegada da representação LGBTQ ao festival (não obstante alguns participantes já antes terem dado passos importantes, ao longo dos noventa). Doravante, a cada ano surgem novos interpretes que no palco se visibilizam enquanto pessoas queer perante dezenas de milhões de espectadores. As bandeiras arco-íris aumentam em número nas bancadas e a proximidade ao calendário do Orgulho entrelaça as celebrações. A difusão do acesso à internet torna possível uma comunidade virtual de fãs que criam blogs, fóruns, páginas nas redes sociais. A Eurovisão dá consistência referencial a uma vasta comunidade espalhada por cidades e países distantes.

Com Dana o armário começava a estilhaçar-se. Mas era preciso rebater aqueles que o pretendiam reinstalar. Em 2001, a Holanda torna-se o primeiro país no mundo a permitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Começa o tempo da conquista de direitos para a causa LGBTQIA+ mas também a defesa contra os ataques dos seus opositores.

 

O backlash conservador: “Samo ljubezen” (2002)

Em 2002 a escolha de um grupo drag para representar a Eslovénia no festival motivou protestos anti-gay nas ruas de Liubliana, o que por sua vez fez levou a um recuo na decisão da televisão estatal. Então, foi a vez do activismo LGBT ocupar as ruas da capital e manifestar-se vocalmente. A polémica chega à assembleia nacional e ao parlamento europeu, numa altura em que se avaliava a candidatura da adesão eslovena à União – e dava-se particular atenção à forma como as autoridades geriam a sensível questão dos direitos das minorias.  Os Sestre são finalmente confirmados como representantes do país e, vestidos de hospedeiras de bordo, levam “Samo ljubezen” à Eurovisão.

Há um longo histórico de protestos de grupos conservadores contra a visibilidade LGBTQ no festival. Certos políticos e governos têm tentado de “depurá-lo” da sua bagagem queer, aproveitando a oportunidade que o evento representa para efeitos de propaganda nacional. Quando foi acolhido pela Rússia em 2009, uma marcha do orgulho gay foi brutalmente reprimida – o edil de Moscovo afirmou tratar-se de uma “manifestação satânica”. Em 2013 um beijo lésbico na canção da Finlândia deu o mote para o abandono definitivo da Turquia do festival. A China conseguiu retirar esse momento da transmissão em diferido. Mas cinco anos depois a EBU, a directora do evento, não permitiu à televisão chinesa censurar a dança entre dois homens na performance irlandesa (ou as tatuagens do guitarrista da Albânia), e desde então o festival deixou de ser transmitido no país mais populoso do mundo.

E há mais exemplos recentes. Em 2021, a Bielorrússia foi impedida de participar com um tema que, entre várias posições anti-progressisas, escarnecia dos “rapazes vestidos com roupas de meninas”. Também a canção do Chipre, uma das mais diabolicamente dançáveis desse ano, foi acusada pela igreja ortodoxa de blasfémia contra a fé cristã. Onde a comunidade reconhecia um percurso de emancipação, outros viam sinais do “fim da Europa”, como escreveu um político russo quando o festival foi ganho por uma drag queen.

 

Uma “cultura queer”?: “Euphoria” (2012)

Os países mais conservadores têm encarado a Eurovisão como uma perigosa força de mudança – “perversão”, diriam eles – social. Não há nada que meta mais medo a um regime ditatorial do que pessoas a divertirem-se livremente. Quando o Azerbaijão acolheu o evento, o governo iraniano retirou o seu embaixador do país perante a possibilidade de se realizarem acções pró-gay em Baku. Loreen, a vencedora desse ano, levou a um novo patamar o impacto musical da Eurovisão no panorama queer internacional. “Euphoria” juntou-se à lista de hinos da comunidade: tocada nas marchas, em bares e discotecas, em filmes e séries. Passados mais de dez anos, ainda a ouvimos com frequência. Loreen regressa este ano ao festival e é, à data de escrita deste texto, a favorita ao primeiro lugar. 

A temporada eurovisiva tornou-se uma fábrica de hits que pode ou não coincidir com a votação geral do júri e público. Os interpretes das canções mais bem acolhidas pela comunidade LGBTQ fazem tournée pelos principais prides da Europa. Canções como “My Number One”, “Dancing Lasha tumbai”, “Fuego” e, por que não dizê-lo, “Eu quero ser tua” da portuguesa Suzy, são alguns exemplos entre dezenas que conquistaram imediatamente o público e as festas. 

A Eurovisão deve o seu renascimento mediático à comunidade queer. É ela que tem actualizado criativamente o festival sem perder de vista a receita de sucesso: um espectáculo algo caótico de luz, música e dança, temperado com doses desproporcionais de açúcar, picante e drama operático (a opção intimista, apesar de mais arriscada, também é possível, e Salvador Sobral é disso prova). Onde a “crítica séria” vê um insuportável espavento pirotécnico, os fãs deleitam-se com a estética “over the pop” de inspiração kitsch e camp, recursos estilísticos muito utilizados nas expressividades queer. No fundo, o que se espera é simples: um pouco de deslumbramento instantâneo e de encher o olho. E isso não deve merecer a censura de ninguém.

 

A consagração da Queerovision: “Rise like a Phoenix” (2014)

Dezasseis anos depois de Dana, a coroa é entregue a Conchita Wurst. O palco do festival vinha sendo, durante esses anos, progressivamente reclamado como espaço de visibilidade para a comunidade LGBTQ. A ascensão de uma drag queen criada por um homem gay austríaco ao pódio da Eurovisão confirmava plenamente essa ambição. “Rise like a Phoenix” teve o mesmo efeito na normalização da presença de pessoas queer no evento que “Diva” tinha tido no rompimento com o tabu da orientação sexual e identidade de género.

 

Hoje não é notícia, já não surpreende ninguém, a participação de interpretes LGBTQ+. Andámos um longo caminho desde os amantes secretos de Jean-Claude Pascal. Com Conchita, abriu-se um novo capítulo na visibilidade queer da Eurovisão. Já não se esconde a orientação sexual. Duncan Laurence fez questão de sublinhar o facto de ser bissexual numa conferência de imprensa antes da final de 2019, onde conquistou o primeiro lugar. Vencedores de edições anteriores, como Marija Šerifović e Loreen, também o fizeram pouco depois das respectivas edições. No ano passado, os Måneskin levaram a Turim um apelo de libertação sexual, de que eles eram exemplo. Não haveria espaço neste artigo para enumerar todos os concorrentes que tornaram público o seu coming out.

A história da Eurovisão entrou numa fase de quase normalização das questões queer. O dezanove.pt dedica um texto aos que participam na edição deste ano – e são tantos, tão diferentes e talentosos. Mas falta mais. Apesar da conquista pioneira de Dana International, a representatividade trans tem sido, desde então, muito limitada. Em 2022, a banda islandesa Systur deu um importante contributo ao levar os direitos trans para o festival e ao introduzir a bandeira do movimento em casa de milhões de espectadores. Em próximas edições, espera-se que mais o façam.

Cinco canções deram o mote para falarmos da evolução da visibilidade e representatividade queer ao longo da história da Eurovisão. É um caminho em construção que não está isento de desvios e retrocessos. A ascensão dos extremismos populistas e reaccionários na Europa é talvez a maior ameaça às liberdades e aos direitos conquistados. A projecção mediática de um festival pancontinental onde as minorias têm voz é algo que não deve ser subestimado. Em 2023, o mundo vive assombrado por tensões bélicas e a Eurovisão escolhe para seu lema “United by Music” – um lema que a comunidade LGBTQ tem apregoado, dando o corpo às balas, desde os seus primeiros passos.  

 

Pedro Leitão