Xica Manicongo trata-se da primeira pessoa a ser reconhecida, através de um documento, como travesti no Brasil, em pleno século XVI. E é graças a um arquivo existente em Lisboa que esta história é hoje conhecida.
Xica Manicongo já era incrível mesmo sem saber a importância que viria a ter neste tempo presente, e que a sua história e resiliência se iriam tornar num símbolo de força e esperança na luta pela nossa identidade.
E o que é que torna esta figura tão importante e emblemática? Sim, gostava de se vestir como mulher, e sim, era uma pessoa que nasceu para ser livre e viver de acordo com a sua identidade. Mas como viria a ser isso possível numa altura e num país em que as normas sociais, as regras de conduta e as próprias leis ditavam até a forma como nos deveríamos, ou não, vestir? Conjunto este de regras que eram regidas pelo Código de Ordens Filipinas, e pela Inquisição.
Escravizada para trabalhar na cidade de Salvador como sapateira, Xica leva os seus costumes, crenças e valores, e mantém o uso de um pano na cabeça com um nó à frente, tipicamente usado no Reino do Congo de onde era originária. A sua identidade feminina assumida despoletou interesse na população, e bem, Manicongo significa Rainha, mais propriamente Rainha do Congo, original demais para uma sociedade reprimida e ainda em construção social.
Devido a uma denúncia feita ao Tribunal do Santo Ofício em 1591, temos hoje conhecimento e acesso à sua história (através de registos documentados no Arquivo de Lisboa, identificados pelo antropólogo Luiz Mott). Xica recusara-se a usar roupa própria do género masculino, continuando a viver de forma aberta a sua sexualidade e opondo-se às regras da sociedade, uma liberdade de expressão que viria mais tarde a ser penalizada.
A sua constante desobediência perante as autoridades forçou-a a escolher entre: continuar a ser fiel a si mesma sabendo que lhe custaria a vida, ou entregar-se a uma religião à qual não pertencia, e viver reprimida em liberdade. Decide recalcar a sua mulher interior para satisfazer a sociedade, e assim é baptizada como Francisco. A sua aparência foi convertida, mas não a sua essência.
Actualmente a sua memória é celebrada pela comunidade LGBTI+ pelos seus vários actos de bravura, inspirando artistas e activistas como Neon Cunha, que contribui para a comunidade trans brasileira.
A afirmação da nossa identidade é um processo moroso e todos nós passamos pelo mesmo. Seja em que idade, em que estatuto, escola, emprego, ou socialmente, vemo-nos desafiados a lutar pela nossa integridade. Foi graças a uma denúncia que hoje usamos este exemplo verídico, datado há alguns séculos, para relembrar a urgência da reafirmação da nossa comunidade.
Marisa Valente