opinião

“Despediram-me por eu ser demasiado masculina”

Ontem fui mais uma vez entregar currículos aqui no Porto. Respirei fundo, como todas as vezes que saio de casa à procura de emprego, mas ontem devia de ter respirado mais.

 

Entrei numa loja de um shopping bastante conhecido em Santa Catarina, ia entregar o meu CV. Mas logo que entrei reparei na farda da funcionária e então tão depressa comecei a falar como já estava a ir embora. Como já tinha dito “Boa tarde” com cara de quem ia continuar a conversa, achei por bem não virar costas sem dizer o motivo de me ir embora tão de repente. “Vinha entregar o meu CV mas já vi que usam farda”- Disse eu.
A farda tinha um corte nada neutro e incluía um lenço no pescoço, de lado, bastante feminino e formal.
A funcionária respondeu-me “O que tem a farda?”. Aqui fica a conversa:

Eu: Se eu viesse para aqui trabalhar e dissesse que não me sinto confortável a usar a farda que a senhora tem vestida, por ser demasiado feminina para mim, a sua supervisora mantinha-me aqui a trabalhar?

Funcionária: Não.

Eu:
Pessoas com uma expressão de género como eu, encontram muitas dificuldades em encontrar emprego, porque não nos encaixamos nestas normas da sociedade. Eu não me sinto confortável a usar a sua farda, mas usaria, muito provavelmente a farda mais masculina.

A funcionária começou a ficar extremamente arrogante e passou a defender a “sua” empresa:
Estas são as normas da empresa. Esta é farda deles e eles oferecem a farda e tudo. Então se já oferecem… É uma norma deles para se trabalhar aqui. É igual para todos.

Eu: Então, mas os homens utilizam essa farda que tem vestida?

Funcionária:
Não. Não é bem igual. Mas é assim, com isto (e apontou para a peça de cima da farda), também tem estas coisinhas aqui. Só não usam assim o lenço, como é óbvio! (Acentuou o “como é óbvio”)

Eu: Então, mas não rejeitaria a farda. Vestia a farda na mesma da empresa. Mas seria a que vocês usam para homem.

Funcionária: (Abanou a cabeça a dizer que não)

Eu:
Estou há 1 ano sem conseguir emprego porque não aceitam a minha expressão de género. É muito difícil conseguir emprego quando existem fardas que não são neutras.

Funcionária: Isso é problema seu.

Eu: O problema não é só meu… (Ela interrompeu-me)

Funcionária: São normas da empresa e nós temos que as respeitar. Existem outras regras aqui. Não podemos usar brincos compridos, não podemos usar as unhas como queremos, não podemos ter o cabelo como queremos, a maquilhagem também é como eles querem. E não se pode usar tatuagens nem piercings. Se é uma forma de exclusão? Talvez seja. Mas esta empresa é assim.

 

Eu: Mas o que tem os brincos?

Funcionária: Porque não é esta a imagem que a empresa quer. A empresa quer que o cliente se concentre no produto, não na imagem.

Sem querer alongar muito mais a conversa, tenho a certeza que o que aqui está já é o suficiente para perceberem a maravilhosa conversa e o porquê de eu inicialmente dizer que deveria ter respirado mais fundo.

De facto, estou há 1 ano no Porto a tentar arranjar emprego e a única vez que me chamaram foi para uma loja de roupa. Despediram-me depois de 1 mês à experiência e disseram-me “Tu pelo teu trabalho ficavas, mas a supervisora não vai aceitar que uses roupa de rapaz”.
Despediram-me por eu ser demasiado masculina.
Mais tarde, quando lhes disse que isso seria discriminação no trabalho e que é crime perante a lei, tentaram arranjar outro tipo de desculpas como “Não eras aquilo que nós procurávamos”.

Já tive imensas discussões com pessoas que me dizem que trabalho é trabalho e vida pessoal é vida pessoal. Não discordando com a frase, mas o trabalho é o sítio onde passamos a maior parte da nossa vida, além da nossa casa. É necessário que te sintas confortável para que consigas ser uma pessoa produtiva.
Faria sentido eu mudar quem sou? Se me sinto confortável a usar roupas mais masculinas e me obrigassem a vestir vestidos, iria estar a esconder o meu “eu” e tornar-me como a sociedade acha que é correto que eu seja.
Pergunto-me qual a necessidade que as empresas têm de ter fardas para homens e para mulheres ao invés de fardas neutras, qual a necessidade de excluir pessoas com tatuagens e piercings ao invés de avaliar a capacidade de trabalho, qual a necessidade de associarem mulheres a uma expressão de género feminina.
Pergunto-me que se o objetivo daquela empresa da loja onde entrei ontem é, de facto, o cliente se centrar no produto e não na imagem, porquê tantas regras de imagem? No final de contas não é a venda do produto que interessa?

O nosso emprego é o que nos sustenta. É o que paga as contas no final do mês, o que nos ajuda a manter uma casa ao lado de quem futuramente queremos formar família. O nosso emprego está no topo da nossa pirâmide. Ele é necessário. É uma das bases mais importantes na construção da independência e bem-estar.
Como estarei eu então? Como estarão a sentir-se as pessoas desempregadas? Vamos reforçar: Como estarão a sentir-se as pessoas que estão desempregadas porque ninguém lhes dá emprego devido à sua expressão de género?
Seremos menos capazes?
Ora, ponham-nos à prova.

A Nike e Adidas fizeram campanhas contra a discriminação. Elas não sabem que os seus produtos estão em lojas onde os donos dessas lojas são sexistas e que discriminam pessoas com base na orientação sexual, na identidade e expressão de género.
Portugal faz as leis. E o país inteiro acha que estamos a evoluir.
Para o país evoluir é preciso que se reconheçam essas leis e que sejam cumpridas. Costuma-se dizer que “As ações é que contam. Não as palavras.”
Portugal não está a evoluir. Portugal está estagnado. E estamos todos iludidos com estas leis que vão aparecendo e que não servem para mais nada a não ser para disfarçar a nossa mentalidade conservadora.

Depois de tantos anos de luta, ainda não baixei os braços e nem pondero baixar. Mas é desmotivador lutares pelos direitos que não são só para ti e mesmo assim apontarem-te o dedo e chamarem-te de “anormal”.
A minha luta não se faz apenas atrás de câmaras ou atrás de teclados em redes sociais. A minha luta faz-se todos os dias, frente a frente com a sociedade, lá fora.
A minha mãe já me disse muitas vezes: “Só pensas nisso. A tua vida são só essas coisas. Não pensas em mais nada. É só essas trenguices.”
Como ela, pensa muita gente. Estas “trenguices” são a minha luta constante para fazer do mundo um lugar melhor.
É muito pouco motivador quando tentas lutar pelos direitos em nome de todos e condenam-te por isso. Afinal, querem realmente um mundo melhor? Ultimamente ouço respostas como a funcionária da tal empresa: “ Isso é problema seu.”

Todos dizem que sou uma pessoa extrovertida, bastante inteligente e com grandes capacidades. Mas os patrões das empresas só vêm a inexistência do meu “eu feminino”. Por isso, não posso pagar as minhas contas, ser independente e pensar em construir uma família.
Sinto-me inútil. Sinto o meu coração apertado de tristeza e sufocado de diferenças.

 

Cara sociedade, o problema não é só meu. É de todos.

 

MP, youtuber do canal “MP & Bárbara

11 Comentários

  • Anónimo

    Quando a vontade de trabalhar não é muita qualquer desculpa serve. Enfim…

  • Luis

    Hey!
    Espero que essa luta por um emprego aberto, em que a imagem nao te seja julgada resulte e que comsigas mesmo um que sejas feliz, ou no qual pelo menos os teus objevtivos possam ir adiante.
    Em relaçao ao teu post, foi a 1a vez que li um, em nao posso concordar contigo.
    A norma, aplica-se quer nos sejamos x ou y ou simplesmente se nao nos indentificar-mos mais ou menos com um género, mas isso por si só é discriminacao.
    No meu atual trabalho, o meu cabelo tem de estar penteado de uma x forma, e nao é de todo ao que vá de encontro áquilo que sou, já noutros trabalhos a barba tinha de ter medida “assim ou assado”.
    E fico doente só de pensar nisso.
    Verdade seja dita e tens razao, os géneros estao demasiado esteriotipados hoje em dia, e infelizmente isso nao vai por caminhos melhores, mas na realidade neste aspeto, trabalho, as empresas têm as suas normas e nao posso sentir-me diminuido porque nao posso usar determinada coisa ou estilo.
    Digo-te isto, trabalhando numa das lojas que mais cuidado se tem de representar com a imagem.
    Em que entras de chapeu, calcao rasgado e tens de vestir um fato e gravata.
    Claro esta, que uma mulher tem de usar o vestido e um homem fato, mas seria nao me focar naquilo que é o objetivo de empresa se eu pedisse ou quisesse usar um vestido no meu trabalho, quer me identifique mais ou menos com o genero oposto.
    Isto iriq distrair o cliente daquilo que é o nosso foco. O trabalho, o produto, o crescimento da empresa porque nao vou “comprar”uma discussão com algo que na minha vida pessoal nao tem impacto.

    Acho que é uma luta tua de direito, mas nao uma que devas conseguir pois uma coisa é respeitar minorias, como na minha empresa em que na maioria ves mulheres, e contratam-me tendo isso em conta (um homem), outra é pedir-lhes que mudem toda a sua estrutura.
    Nao se trata de falta de respeito deles, apenas a normativa corrente que esta enraizada em todas as empresas e sendo trabalho devemos respeitar.
    Essa tal senhora de lenço, pode nao ter sido educada mas que roupa veste ela depois do trabalho ?
    Usa maquiagem?
    Nao sabes, e quanto a isso garanto que ninguem te poderia apontar o dedo, quanto a trabalho, adaptacao é a palavra chave.

  • F

    As empresas só teriam a ganhar se tivessem um uniforme base com várias peças que o empregado/a poderiam escolher e depois dar uns toques pessoais, se assim o entendessem. Acredito que a farda é importante e certos pontos, como cuidado com o cabelo, por exemplo, podem ser importantes para a empresa para a qual se está a trabalhar. Mas hoje em dia ter pessoas como a MP, que não têm uma expressão de género estritamente masculina ou feminina só faria bem à própria imagem da empresa, dando um ar menos cinzento e mais “urbano” e inclusivo. Espero que me tenha feito entender…

  • Marisa Cruz

    Deixando o meu cunho…mas pesquisa por empresas que estão a desenvolver mais relação com o colaborador! Já há empresas top em termos de recursos humanos..como a Leroy Merlin (a sua filha ou prima sei lá como o Aki), a Decathlon, o Lidl que parece que vai começar um caminho em que a felicidade do colaborador é que importa…e provavelmente tantas outras…e mais no Porto onde há tudo! Boa sorte:)

  • Luis Porto

    Quando a vontade de trabalhar não é muita…qualquer desculpa serve! Até a farda!
    Como a senhora MP referiu falou com uma funcionária e não com supervisor(a)/gerente. Em vez de a questionar em relação às funções laborais preferiu dar uma lição de “moral”. É este tipo de ações que enfraquece e ridiculariza a nossa comunidade.
    Compreendo a questão da expressão de género mas não é tratando as pessoas “eu cá tu lá” que avançamos. Não foi o momento certo nem a pessoa certa para aquele tipo de discurso.
    Não sei se ela sabe… mas há pessoas a MORRER na Chechénia por serem homossexuais! E está preocupada com uma farda?! Poupem-me…

  • rafa

    E não consegues virar o jogo a teu favor? Por mais irritante que seja aposto que há sítios que te preferem a uma rapariga femenina. Numa loja de material de desporto, suplementos, na embaixada lumográfica ou qualquer tipo de loja relacionada com cultura. É que não estas sozinha e de certeza que vai haver gente que te prefere, é só o patrão aperceber-se disso. é só…

  • Anónimo

    Falácia das prioridades? Acha bem que exista discriminação só porque não é tão mau como na Chechénia? Você calado era um poeta.

  • Luis Porto

    Não me calo porque TENHO DIREITO À MINHA OPINIÃO!
    E a minha opinião não é fazer comparações mas sim relativizar o “acontecimento”. E ela não foi discriminada porque nem sequer falou com o/a responsável pela contratação! Falou com uma funcionária.
    Aliás… Se lerem bem a segunda frase do segundo parágrafo… “Mas logo que entrei reparei na farda da funcionária e então tão depressa comecei a falar como já estava a ir embora.” A senhora MP é que discriminou a loja e a funcionária pois nem sequer ia tentar uma oportunidade naquele local de trabalho porque “já estava a ir embora”! Como se a farda fosse o verdadeiro motivo…
    Virar as costas nunca trouxe nada de bom à nossa comunidade. As nossas lutas têm de ser reais e não umas birrinhas por causa de uma farda. Repito, não foi o momento certo nem a pessoa certa para aquele tipo de discurso. Não é com imposições que vamos lá. Muito menos cuspindo para cima daqueles que não entendem as “diferenças” dos outros.
    A expressão de género ainda tem muito que evoluir em Portugal, eu sei, mas há maneiras mais eficazes de conquistar essa liberdade. Em vez de ser bandeirinha contra a discriminação e querer arranjar tema para vídeos no Youtube ou tentar visibilidade para ir às tv’s e ser famosa…que tal para a próxima uma conversa sumária e elucidativa, sem receios e preconceitos e juízos de valor, com quem realmente lhe dá o contrato? Há quem não entenda estas questões porque nunca foi realmente confrontado com isto. Não é com comportamentos de superioridade que avançamos mas sim explicando e educando quem não sabe/percebe. Requer tempo, muito tempo, mas a ignorância, a deles e a de alguns de nós, pode ser reduzida.

    P.S. 1 : A comparação deste “evento” com a Chechénia serviu apenas para mostrar o quão ridícula esta situação toda foi.

    P.S. 2 : “calado era um poeta” Muito interessante… Quando um homossexual tenta calar outro algo de muito bizarro acontece. Discriminação dentro da nossa família faz os homofóbicos saltar de alegria. Vivemos em democracia, lembra-se?

    P.S. 3 : Sei muitíssimo bem o que é discriminação no trabalho. Senti os olhares, os comentários, as provocações… Hoje sou chefe e lidero uma equipa de 26 pessoas e nunca, NUNCA, me vitimizei nem fui fazer queixinhas aos blogs. Custou mas foi com o meu trabalho que conquistei o meu posto e, sobretudo, o respeito dos meus colegas. A ignorância deles deu lugar a um ambiente aberto e descontraído onde não há medos nem discriminações, onde em momento de convívio da empresa eu e o meu namorado somos bem recebidos e integrados porque aqueles que um dia me chamaram “paneleiro” na casa de banho. Muitas conversas e muitas explicações fizeram efeito.

    P.S. 4 : Cabeça erguida vale mais que uma birra por uma farda.

  • Anónimo

    Quando a homofobia internalizada é muita qualquer comentário serve. Enfim…

  • Anónimo

    A localização mais difícil do mundo: o lugar d@s outr@s.
    Cada um tem a sua luta. Todo esse discurso foi um “Se já temos isto, porque lutar por aquilo?”
    A luta por uma sociedade em que não haja discriminação sob a expressão de género é feita por pessoas que são vítimas de tal.
    É claro que quem não passa por isso, (como pessoas que escrevem esses comentários cheios de egoísmo porque não é algo que lhes toca na pele) não vai valorizar essa luta.
    Não se comparam lutas! E muito menos ir buscar coisas que não se encaixam aqui.
    Dizer que a vontade de trabalhar é pouco quando não se conhece a pessoa, a sua luta e a história, já diz muito sobre si.
    São pessoas como estas que desvalorizam quem está há anos a lutar por fazer o mundo um lugar mais bonito. Seria bom fazer a sua parte ao invés de vir aqui fazer um insulto disfarçado de crítica.

  • Anónimo

    Lá está aqui a prova.
    É homem, mas sente-se confortável com roupas “masculinas”. Agora experimente ir à procura de emprego com uma saia. Quando estiver a trabalhar, experiente ir de saltos, com maquilhagem e unhas pintadas.
    Vai assim mesmo que a empresa diga que o tem de o fazer todos os dias?
    É assim que alguém como a MP se sente. Não nos sentimos bem a ser quem não somos. As fardas devem ser neutras! É tão difícil se colocar no lugar das outras pessoas não é?
    Calado era mesmo um poeta.