opinião

Comunidade LGBT – Faltam cores na tua bandeira

Ah, o Mês do Orgulho. O mês mais colorido do ano – em teoria.

Na prática, nem sempre me é fácil ver para além dos tons acinzentados, face à rota distópica em que nos encontramos. Entre a ascensão da extrema-direita na Europa, um genocídio a acontecer na Palestina com impunidade para Israel, e uma notícia nova todos os dias sobre como estamos a tornar o planeta cada vez mais inabitável, quase que me esqueço quais são as cores do arco-íris.

 

Mas esta minha dificuldade não parece ser comum a toda a comunidade LGBT. Aliás, vejo com estranheza como alguns dos seus membros – amigos da vida real e virtuais, influencers, comunicadores, artistas, celebridades – falam alegremente sobre o Pride nas suas redes sociais como se nada se passasse, enfeitando os seus feeds de glitter e proclamando nos seus perfis que “amor é amor” – mas só durante o mês de Junho. No resto do ano, estas mesmas pessoas não usam as suas redes sociais para proferir nenhuma palavra sobre qualquer questão política ou social.

Isto confunde-me. A meu ver, é muito difícil separar a comunidade LGBT de outros grupos marginalizados, e mesmo que seja possível fazê-lo, nunca foi tão importante esbater as linhas que nos separam uns dos outros. Mas tenho estado atenta aos possíveis motivos que levam a isso, e entendo-os, ainda que não concorde com eles.

Por isso, colega da luta queer, quero falar contigo. Quero salientar alguns desses motivos que identifiquei, e tentar rebatê-los. 

 

1 – Se é porque não usas as redes sociais para falar sobre política 

Poderia responder que tudo é política, e entraríamos num debate filosófico sem fim. Mas para simplificar: o Pride, pelo menos, é político. Se usas o teu instagram para falar sobre o Pride e nada mais, seria mais correcto afirmares que só usas as redes sociais para falar sobre alguns temas políticos. E aqui cabe a pergunta: o que te leva a escolher o Pride especificamente? É uma questão de identificação? Se sim, porque é que é que te reconheces tanto nesta comunidade e não em outras?

Já voltamos a isso. Vamos antes dar um passo atrás, porque pode ser que não concordes sequer com a minha premissa. Talvez, para ti, o Pride não seja político. Vamos então ao segundo ponto.

 

2 – Se é porque o Pride para ti é apenas uma celebração

É verdade que hoje o Pride é sim uma celebração. E o clima festivo do mês do Orgulho faz com que seja mais fácil interagir com ele do que com outras questões sociais que têm menos purpurina. 

Eu pessoalmente dou muito valor à festa como forma de luta, e acho que a alegria de pessoas marginalizadas é revolucionária. O problema, creio eu, surge quando o Pride é reduzido à sua estética eufórica, e perde-se a memória de porque é que é preciso sequer haver um mês do Orgulho. 

Não podemos perder de vista que o Pride começou como um protesto, e a opressão contra a qual se lutava em 1969 não só está longe de desaparecer como afecta muito mais do que só a comunidade LGBT. 

Se pensarmos nesse primeiro Pride, que foi um protesto contra a violência policial, que é o mesmo que dizer contra a violência do Estado, torna-se nítido que a luta LGBT tem muito em comum com a luta feminista, anti-racista, anticolonialista, anticapitalista, entre tantas outras. Mais ainda, se pensarmos que as heroínas desse primeiro Pride foram mulheres trans, negras, imigrantes, pobres, percebemos que a luta queer é, na sua génese, interseccional. Na nossa comunidade existem pessoas de todos os géneros, nacionalidades, etnias, fés e classes. Para nos celebrarmos plenamente, não podemos fazer recortes apenas do que nos é confortável. 

E isto leva-me ao terceiro ponto. 

 

3 – Se é porque só falas sobre temas com os quais te identificas

Usas a tua plataforma para falar sobre o Pride e não sobre outras causas porque te identificas particularmente com a comunidade LGBT. Certo.

Tendo em conta a tal diversidade da nossa comunidade, é interessante que reflictas sobre se de facto te identificas com ela, ou apenas com a parte dela que se parece mais contigo. E de qualquer forma, não será esta uma forma um pouco egoísta de estar no mundo? Se não nos solidarizamos com outras causas porque as suas vítimas não se parecem connosco, teremos direito a queixarmo-nos quando pessoas heterossexuais não se importam com os nossos direitos?

Mas vá, os seres humanos são um pouco egoístas por natureza. No fundo, o que queremos é bem-estar para nós e para os nossos. Mas isto também é um motivo para levantar outras bandeiras ao lado da bandeira arco-íris. 

Para começar, porque se pensarmos bem em quem são “os nossos”, vamos perceber que esse grupo é muito mais vasto do que parece à primeira vista. No meu caso, “os meus” são a minha família e os meus amigos. É a comunidade LGBT. São as mulheres. São também os portugueses e os brasileiros, com quem partilho passaportes. E já agora, os imigrantes e filhos de imigrantes, com quem partilho experiências. E os músicos, e os escritores, e as pessoas que gostam de viajar, e as pessoas que adoram chocolate, e os Sagitários, e as pessoas que ao fim do dia só querem ter mais dias felizes do que dias tristes. A brincar, a brincar, “os meus” são o mundo inteiro.

Mas posso ser mais simples e mais egoísta ainda: a solidariedade é uma rua de dois sentidos. Se eu puder ser aliada na luta de um grupo ao qual não pertenço, por mais que não me identifique em nada com ele, esse grupo terá mais motivação para me defender quando eu precisar. E mais cedo ou mais tarde, todos vamos precisar. 

 

4 – Se é porque não tens que publicar nas redes sociais para provares que te importas

Claro. Sei que parece que estou a partir do princípio que o que passa nos teus stories é indicativo do que passa no teu coração, e isso é injusto. E na verdade, uma publicação ou uma partilha, por si só, não tem assim tanto impacto, para além de sinalizar aos teus seguidores que te preocupas com determinada causa. 

Mas esse argumento só é valido se de facto te envolveres com as causas que te importam de outras maneiras. 

Deixo, então, primeiro, uma reflexão: fora das redes sociais, e fora do mês de Junho, o que tens feito? Que bandeiras tens levantado? 

Deixo, então, primeiro, uma reflexão: fora das redes sociais, e fora do mês de Junho, o que tens feito? Que bandeiras tens levantado? 

E segundo – e para terminar – deixo um desafio: que trabalhes (caso ainda não o estejas a fazer) para que aquilo que passa no teu coração se reflicta nas tuas escolhas; na forma como votas; nas manifestações a que vais; nas conversas que tens; nos produtos que consomes; nas organizações que apoias; nos amigos com que te rodeias; nos formadores de opinião a quem dás tempo de antena.

Para terminar – deixo um desafio: que trabalhes (caso ainda não o estejas a fazer) para que aquilo que passa no teu coração se reflicta nas tuas escolhas; na forma como votas; nas manifestações a que vais; nas conversas que tens; nos produtos que consomes; nas organizações que apoias; nos amigos com que te rodeias; nos formadores de opinião a quem dás tempo de antena.

É um trabalho difícil e dura a vida toda. Mas aí está mais uma coisa que a comunidade LGBT tem em comum com tantos outros grupos marginalizados: estamos habituados a batalhar. E pode ser que aconteça contigo, como acontece comigo, de o mundo passar a parecer demasiado cinzento de vez em quando. Mas aproveita o glitter do Mês do Orgulho e certifica-te de que, no meio deste trabalho, arranjas tempo para ser feliz – porque a luta também passa por aí.

 

Maria Kopke