Ler Sempre Estivemos Aqui foi uma experiência transformadora. Este livro, uma narrativa profundamente pessoal de Samra Habib, oferece um vislumbre poderoso das interseções entre ser queer, muçulmana e mulher num mundo que muitas vezes não acolhe diferenças.
Identifiquei-me com muitos momentos da narrativa de Samra. A luta pelo reconhecimento da sua identidade, a procura de pertença e a reconciliação de aspetos aparentemente inconciliáveis da sua vida refletem desafios que tantas pessoas enfrentam, quer sejam ou não parte de minorias. Este livro é, ao mesmo tempo, um convite e um alerta: precisamos de criar espaços seguros para que as pessoas possam ser autênticas, sem medo de julgamento ou represálias.
Samra Habib não apenas partilha a sua história; ela pinta um quadro vivo de resiliência e de coragem. Desde a sua infância no Paquistão, marcada pelo medo e pela repressão, à descoberta da sua sexualidade e da sua voz no Ocidente, cada etapa da sua jornada é contada com uma honestidade que toca profundamente. Como mulher muçulmana queer, Samra desmantela estereótipos e desafia as ideias preconcebidas que muitos têm sobre o que significa pertencer a estas identidades.
No meu trabalho clínico, encontro frequentemente indivíduos que, como Samra, lutam para equilibrar as expectativas da família e da sociedade com o desejo de viver de forma plena e verdadeira. Este livro oferece um testemunho que valida essas experiências e oferece esperança. Samra mostra-nos que é possível criar comunidades onde não apenas sobrevivemos, mas onde florescemos.
É também importante destacar como a dimensão espiritual é tratada nesta obra. Samra explora a sua relação com o Islão, um aspeto frequentemente ignorado ou simplificado em discussões sobre a comunidade queer muçulmana. Em vez de rejeitar completamente a fé que lhe foi transmitida, ela procura reinterpretá-la, encontrando significados que a acolhem em vez de a excluírem. É uma lição poderosa sobre como a espiritualidade pode ser uma fonte de força, mesmo em contextos de opressão.
A tradutora Bárbara Novais merece uma menção especial. A forma como conseguiu manter a intensidade emocional e a clareza da narrativa é notável. As palavras de Samra chegam a nós com uma proximidade e uma humanidade que nos fazem sentir que estamos a ouvir a autora contar a sua história em pessoa.
Recomendo Sempre Estivemos Aqui não apenas como uma leitura, mas como uma experiência. Este livro não nos deixa iguais; ele transforma, sensibiliza e ensina. É uma obra essencial para quem quer compreender melhor o mundo em que vivemos e as lutas que ainda precisamos travar para garantir que todos possam ser quem são, sem medo e sem vergonha. E para quem, como eu, encontra em livros como este um espelho de coragem e resiliência, é também um lembrete poderoso de que, apesar de todas as adversidades, sempre estivemos aqui.
Letícia David