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Fiz uma profilaxia pós-exposição. Esta é a minha história

O dezanove.pt apresenta um testemunho na primeira pessoa de quem poderá ter tido contacto com o vírus do VIH depois de sexo desprotegido.

 

Numa festa gay, em Dezembro, a pista já estava naquela fase em que já se nota uma debandada geral à medida que a madrugada avança. Há uma boa razão, contudo, para ter ficado até ao final da noite, já com quase ninguém na pista: um amigo estava num estado de alcoolémia generoso e, claro, vi que precisava de apoio. Resolvi acompanhá-lo até ao fim, a tentar protegê-lo de si mesmo, tentar tirá-lo dali, tirar-lhe bebidas da mão… que eu acabava por beber. Já de saída, um rapaz apareceu sabe-se lá de onde e quando dei por mim estava num táxi. Acabei por fazer sexo sem preservativo com ele.

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Não foi a primeira vez que tomei esse risco. Das outras vezes, foi algo ponderado, num contexto mais regular e de confiança. Não foi irracional. Deixei-me ir desta vez, simplesmente. Estava muito bêbado e já não sabia o que estava a fazer – o que é estranho em mim.

Fui-me embora do apartamento dele no centro de Lisboa, cheguei a casa e dormi. Acordei à tarde com uma chamada de um dos meus melhores amigos a perguntar-me como tinha sido o resto da noite. Fui lacónico. Nada de especial. Ele achou que estava estranho e começou a fazer-me perguntas. Contei-lhe. À medida que ia revelando pormenores, o meu amigo conseguiu perceber quem tinha sido a pessoa com quem dormi. Lisboa é uma cidade pequena e cruzar dados é fácil. Percebemos que era uma pessoa com hábitos sexuais que incluíam a frequência de quartos escuros. A probabilidade de infecção poderia ser mais do que uma paranóia. Soaram os alarmes – e resolvi fazer uma profilaxia pós-exposição. No final dessa mesma tarde, estava no Hospital de Santa Maria.

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Cheguei ao hospital e, na triagem, expliquei à enfermeira que queria fazer a profilaxia. Fui afirmativo. Quero fazer a profilaxia pós-exposição. A enfermeira liga a um médico especialista em Imunologia e pede-lhe para ver-me. Dão-me uma pulseira verde. Esperei 45 minutos para ser atendido.

O médico, ao ver-me e faz-me uma série de questões num tom informal que me pôs à vontade. Fizeste sexo sem preservativo? É algo regular ou foi ocasional? Houve sangramento? Foste passivo ou activo? Um pro-forma para saber se estava apto para receber a profilaxia ou não, percebi. Seguiram-se as análises. Esperei duas horas até me fazerem a colheita e mais duas horas, quase três, até receber os resultados. Fiquei, durante todo o processo, relativamente calmo.

Chego a casa às 23h e faço a primeira toma dos comprimidos: Tenofovir e Lamivudina. Os dois todas as noites e doze horas depois, pela manhã, um comprimido de Lamivudina. Deram-me medicação suficiente para aquela noite. A restante teria de levantá-la no hospital no dia seguinte, após consulta de imunologia. Às 8 da manhã, regressei ao hospital e a médica explicou-me como iriam funcionar as tomas. Marcaram-me análises, para ver como o meu fígado e rins se aguentavam com a terapêutica. Avisaram-me que devia manter sempre os horários para minimizar riscos, entre outras especificações. Ao levantar a medicação, notei, surpreendido, que mais de cem pessoas estavam lá para levantar todo o tipo de medicamentos.

Vinte e oito dias começavam aí. A primeira semana foi horrível: desconcentração, tonturas, dores de cabeça permanentes, enjoos repentinos, os piores da minha vida. Sintomas que foram melhorando à medida que o tempo passou, mas não consegui manter algumas actividades que eram parte do meu dia-a-dia. O ginásio, por exemplo: não conseguia treinar sob o efeito dos medicamentos. O meu olhar ficava baço, perdido. A medicação tinha um efeito forte em mim.

Nesse mês, mantive a frieza em relação ao meu futuro. Apercebi-me que estava num processo de reavaliação da minha vida. Engates, saídas à noite, amigos… O que restava para além disso? O que existia para além disso? Este choque, cheguei a essa conclusão, serviu para pensar em todas as vertentes da minha vida.

Sobre um eventual contágio com o VIH, o que mais temia não era viver com a doença. Era a dependência de um vasto conjunto de medicamentos, de ter de mudar a minha vida e adaptar-me à nova realidade. Contudo, mantive-me sereno.

Quando terminaram os 28 dias, no final de Janeiro, fiz análises. Estava tudo bem. Terei de repeti-las em breve, um mês depois.

Um susto, uma provação, pensei eu. Sair todos os fins-de-semana, beber, a pulsão da noite, os engates. O que me aconteceu teve um impacto que me fez repensar os meus hábitos e não voltar a viver a noite de modo tão leviano e intenso – pelo menos quanto à forma como lidava com as pessoas que conhecia e com quem me envolvia. Antes, vivia a sexualidade com uma inocência benévola, acreditando na partilha e no prazer pelo prazer, sem medos, algo que acho agora ingénuo. Depois do processo da profilaxia, essa crença esfumou-se para sempre. É triste! Não consigo envolver-me com ninguém sem ter pensamentos contraditórios. Se não tivesse passado por isto, continuaria a conceber sexo como forma de comungar, não havendo espaço para egoísmos, ou incúrias, na equação. Contudo, acho que continuo a ter a sorte de me envolver (quase) sempre com pessoas especiais, que se conseguem dar plenamente, num momento tão efémero, quanto genuíno.

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Contar a minha experiência é pedir a quem me lê para pensar. Pensar no que se faz, nas consequências. Parar, pensar em quem são, o que querem para as suas vidas. Porquê arriscar? Nunca mais.

 

Depoimento recolhido por Pedro Garcia

 

16 Comentários

  • MMB

    Fantástico testemunho. Este tipo de informações não existem mas são essenciais! Obrigado pela partilha

  • Filipe

    Este artigo é muito importante.

    Muitas pessoas não sabem que existe esta terapia preventiva.

    Por vezes os acidentes acontecem, um preservativo pode rebentar…

  • Tiago

    Este é um testemunho muito importante.

    Passei pelo mesmo, depois de ter rebentado um preservativo durante uma noite de sexo com um completo estranho numa sauna.

    Os dias e meses que se lhe seguiram são de uma angústia sem limites, que não justificam a aventura de uma noite.

  • ...

    Adorei o testemunho, aconteceu-me algo semelhante nem à 3 horas um preservativo rebentou, estava para aqui com a cabeça à roda,já tinha ouvido falar que existia algum tratamento ou algo do género que podia evitar a contaminação mas muito vago, depois de alguma pesquisa para ver se encontrava o nome do tratamento e onde o poderia solicitar, encontro este testemunho abençoado. Amanha vou ao Hospital pedir o tratamento. Muito Obrigado e boa sorte 😉

  • Anónimo

    Excelente testemunho! Há muito pouca informação sobre estes temas na net. Obrigado por partilhar o seu testemunho com o mundo!

  • Kaique

    Tive a mesma experiência sexta-feira para sábado, durante o dia de fiquei pensando no que fiz e domingo, um amigo disse para eu ir para o Santa Maria, cheguei esperei 7 horas, pois me deram a pulseira Azul e falaram que não era urgente, amanhã às 9 horas da manhã irei ao infectologista que dirá se posso ou não tomar os medicamentos, pelas minhas contas a consulta será 56 horas depois da exposição. Fiz o exame de sangue e como eu já sabia deu negativo, porém estou preocupado uma relação recente, exatamente na mesma circunstância (quarto escuro). Amanhã conto mais sobre, hoje vou dormir parcialmete aliviado.

  • Kaique

    Enfim, continuando depois do dia exaustivo voltei no dia seguinte na infectologista, que prontamente me deu comprimido de isentress e outro de truvada, ela não foi tão simpática, mas muito eficiente e disse o quanto é importante correr atrás o mais rápido possível após a exposição! Gostei do atendimento no geral do hospital, só foi preciso paciência e quando fui na consulta marcada fui atendido bem rapidamente!
    Já tomei 3 doses do remédio e ainda não senti grandes efeitos colaterais. Daqui duas semanas tenho uma análise marcada em dia e a consulta em outro. Estou passando bem, agora completamente aliviado😉!

  • Anónimo

    Após uma noite em que fui um irresponsável e não usei preservativo no acto sexual, decidi ir procurar informações sobre as doenças sexualmente transmissíveis e em quanto tempo podia fazer o teste para saber se a minha irresponsabilidade me tinha custado mais que uns momentos de prazer. Mas,e agradeço a todos os santinhos,encontrei um texto sobre a profilaxia pós exposição. Saí de casa a correr e fui directamente ao hospital de cascais. Lá trataram-me lindamente. Foi-me dada a prioridade laranja e fui respeitado em todos os passos. Amanhã vou á minha primeira consulta do protocolo.

  • Anónimo

    Vivo actualmente a mesma angústia, após um episódio infeliz de rompimento de um preservativo com uma pessoa que não conhecia, e cujo estado de saúde não tenho como determinar. Realizo diariamente a profilaxia (ainda me faltam 25 dias), sendo que não fui informado acerca dos passos posteriores à profilaxia. Sabes informar-me em que momento te dão um diagnóstico conclusivo? Percebi que fizeste análises após o tratamento, mas gostaria de saber o que me espera em termos de acompanhamento, e gerir as minhas expectativas relativamente aos timings de conhecimento. Obrigado pela tua partilha.

  • Anónimo

    importantíssimo seu depoimento, pois estou em fase inicial do medicamento e me sinto bem reflexivo tbm, sobre as atitudes sexuais q vinha tomando e o valor de uma boa saúde. Obrigado!

  • Rafa

    Qual foi o seu resultado? Também estou em tratamento e tão desanimado. Me faltam 4 dias.

  • Ricardo

    hoje é o ultimo dia do meu tratamento pep. também refleti muito sobre meu estilo de vida e aprendi muito como me cuidar melhor.

  • Anónimo

    Ao praticar sexo com uma garota em 05/12/19, por volta das 23:30, a camisinha rompeu. Procurei uma UBS no dia 07/12/19 e tomei medicamentos para prevenir DSTs, além do Tenofovir e Lamivudina mais Dolutegravir. Apesar do risco ser pequeno, mas sem saber das condições da outra pessoa, estou fazendo a PEP, estando já no 12° dia. Apareceram uns sintomas iniciais como desaranjo intestinal por uns três dias, cefaléia logo após o desarranjo e um resfriado sem febre. O desarranjo e a cefaléia passaram e o resfriado melhorando. Acredito serem efeitos da PEP. Enfim, a pergunta é a seguinte: Quem faz uso da PEP, pode fazer uso de suplementos, como Creatina, BCAA, Glutamina, complexo vitamínico, Maca Peruana, Whey Protein e similares? Alguma contra-indicação? E com relação à prática de musculação e bike? Fiquei paranóico, muito encucado com essa situação, até passei noite em claro. Perdi uns dois kg, mas após analisar percebi que havia parado de treinar um mês antes do evento, então a perca de peso foi normal.

  • Anónimo

    Após cinco anos de uma relação estável, tive um desentendimento com meu parceiro e tirei uma noite pra curtir. Bebi além da conta e fui parar em uma sauna onde fui a puta da vez. Tive relações sexuais com vários outros indivíduos sem camisinha. O que me parecia prazeroso naquele momento se tornou um pesadelo. O dia seguinte me recuperando da ressaca veio uma crise de consciência e me dei conta que não poderia seguir como se nada tivesse acontecido.
    Então fui ao hospital e solicitei o início da Pep. Já faz uma semana que tomo os remédios religiosamente no horário definido.
    E ter passado por isso me fez reavaliar a forma como encarar a vida. Pude ver que não existe uma pica que seja capaz de substituir uma relação séria e de confiança, que te traga segurança. Também me dei conta que aventuras assim não tem nada de prazeroso. O sexo pelo sexo é algo muito insosso, e que o prazer de uma relação está além disso. O prazer em uma relação está em ter uma história…
    No sentimento, na preocupação no carinho e no respeito que se pode ter por alguém.
    Ter um passado é planejar um futuro é algo muito mais interessante que resumir tudo em ato sexual com pessoas que você sequer sabe o nome. É desprezar demais a sua própria saúde…