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Nem na mata se encontram histórias assim

"A pequena comunista que nunca sorria", de Lola Lafon

PequenaComunista

Estávamos em 1976, em Montreal. Pela primeira vez na história dos Jogos Olímpicos, uma ginasta alcançava a pontuação máxima: um 10. A protagonista era a romena Nadia Comaneci que, com apenas 14 anos, atingia a perfeição.

É com este episódio icónico que Lola Lafon (n. 1974), escritora francesa que cresceu entre Sófia e Bucareste, começa a narrativa que acompanha o percurso da ginasta, desde o seu recrutamento, aos 6 anos, para uma escola experimental de elite do regime socialista, até ao exílio nos Estados Unidos, vivido em paralelo com a queda da ditadura de Ceaușescu.

Lola Lafon insere o percurso de Nadia C. no seu contexto social e político, nomeadamente nas metodologias empregues pela escola de ginástica romena, onde, ainda muito jovens, as ginastas eram sujeitas a treinos extenuantes, física e mentalmente, dietas rígidas, vigilância constante perante eventuais transformações do corpo e penalizações severas, muitas vezes através da humilhação pública.

O regime ditatorial comunista romeno da época sustentava e legitimava essas metodologias. O sucesso das jovens atletas nos Jogos Olímpicos era usado como ferramenta de propaganda, projectando no palco internacional a suposta superioridade moral e física do sistema.

Paralelamente, o regime exercia um controlo total sobre os seus cidadãos, num quotidiano marcado pela escassez, pela vigilância e pela repressão.

Foi neste enquadramento ideológico e político que Nadia C., com o seu histórico “10 perfeito”, se tornou um símbolo de sucesso nacional e uma cúmplice involuntária do sistema que a moldou.

"A pequena comunista que nunca sorria", no entanto, não é uma simples biografia, mas antes um romance onde ficção e realidade se entrelaçam. Os factos cronológicos documentados no livro decorrem paralelamente com um diálogo ficcional entre a autora e a própria Nadia C.

“Eu gostava daquilo. Não sei quantas vezes é preciso dizer o mesmo: escolhi.”

“Seria excelente se descobríssemos que podíamos ganhar mesmo trabalhando muito pouco, mas, infelizmente, isso não acontece.”

“Todos os desportistas que ganham são símbolos políticos. Promovem sistemas. Comunismo na época, capitalismo hoje. E no seu país…”

Estes diálogos transmitem a ideia de que Nadia C. é uma figura singular. Não só recusa a narrativa da vitimização e a crítica ao sistema que a formou, como reconhece que o seu percurso de excelência foi possível precisamente por ter crescido num ambiente disciplinador. Estes momentos ficcionais terão sido, talvez, a forma encontrada pela autora para contornar os silêncios de Nadia C. e as múltiplas versões sobre o que realmente aconteceu.

Pessoalmente, a fusão entre realidade e ficção não me agrada num livro estruturado sobre factos históricos. A cada página, somos levados a questionar o que é factual e o que é imaginado e, numa época em que temos constantemente de colocar em causa a veracidade da informação que recebemos, ter de fazer esse exercício também numa obra baseada numa figura real pode tornar-se angustiante. No entanto, é possível que tenha sido precisamente a escolha de Lola Lafon em misturar factos e ficção que contribuiu de forma decisiva para os prémios que recebeu com este livro.

Como leitora, o mais interessante nesta obra não é tanto a fusão entre realidade e ficção, mas sim a forma como nos leva a perceber que, por detrás de uma história de sucesso, existem muitas vezes custos inimagináveis — silêncios, dor, obediência cega, anulação pessoal. Ao tomarmos consciência disso, somos levados a questionar: até que ponto vale a pena perseguir a perfeição, seja a que custo for? Vale mesmo a pena? Neste romance, Nadia C. parece achar que sim, mas a resposta, talvez, fique em aberto.

 
Editora: Antígona
Tradução: Luís Leitão
Ilustração de capa: Christina Casnellie 
1.ª edição: Novembro 2024 
Páginas 272
ISBN 978‑972‑608‑452-5 
 

Daniela Alves Ferreira |  @daniela.alves.ferreira

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