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Integridade intersexo: quatro anos de uma lei inacabada

pedro valente

Em 2018, a Assembleia da República aprovou pela primeira vez uma lei que estabelece o direito à protecção das características sexuais e limita modificações medicamente desnecessárias nas características sexuais das pessoas menores intersexo.

 

As pessoas intersexo desenvolvem naturalmente características sexuais – tais como cromossomas, genitais, gónadas, composição hormonal e características sexuais secundárias – que não se encaixam nas noções típicas de “sexo masculino” ou “sexo feminino”. Existem muitas formas de ser intersexo, tratando-se de um espectro ou termo abrangente, em vez de uma única forma de corporalidade.

É comum que profissionais de saúde aconselhem as figuras parentais a autorizar intervenções médicas, como cirurgias adiáveis e irreversíveis, em bebés e crianças intersexo sem o seu consentimento informado, para que os seus corpos pareçam estar conforme as normas de género masculinas ou femininas.

Na grande maioria dos casos, tais intervenções não são clinicamente necessárias e podem ter efeitos extremamente negativos nas crianças intersexo à medida que crescem, com consequências a longo prazo. São muitos os danos provocados por estas cirurgias realizadas sem consentimento informado. Falamos de dor física, perda de sensibilidade genital, cicatrizes, esterilização e incapacidade de produzir as hormonas sexuais, além de consequências psicológicas significativas e o risco das características sexuais alteradas do indivíduo não se enquadrarem no que a pessoa identifica que o seu corpo deve ser ao crescer. Como dito, estas práticas são em sua maioria desnecessárias em termos médicos, logo, cumprem somente o propósito de conformar as crianças às normas de género, em detrimento do seu direito à integridade física. 

Desde 2018, as pessoas intersexo são protegidas em lei com base nas suas características sexuais. No entanto, quando se trata de operações invasivas e irreversíveis e outros procedimentos médicos em menores, a legislação está inacabada.

Desde 2018, as pessoas intersexo são protegidas em lei com base nas suas características sexuais. No entanto, quando se trata de operações invasivas e irreversíveis e outros procedimentos médicos em menores, a legislação está inacabada.

Em vez de proibir quaisquer cirurgias e outros procedimentos médicos adiáveis e desnecessários em crianças intersexo até ser possível obter o seu consentimento informado, a legislação actual refere-se ao “momento em que se manifesta a identidade de género” como o ponto de partida para que as modificações possam ser realizadas.

A legislação actual não define como deve ser comprovada a “manifestação” da identidade de género da criança. Também não é preciso comprovar a capacidade da mesma para consentir com procedimentos médicos.

A legislação actual não define como deve ser comprovada a “manifestação” da identidade de género da criança. Também não é preciso comprovar a capacidade da mesma para consentir com procedimentos médicos.

De forma a realizar estas intervenções nas características sexuais da criança, existe um grande perigo de que profissionais de saúde ou a família afirmem, ou acreditem, que a identidade de género da criança foi “manifestada”. As crianças são particularmente vulneráveis devido à sua dependência nas figuras parentais. A capacidade de uma criança mais nova, ou mais velha, de se defender quando a pressão para fornecer o seu “consentimento” é-lhe aplicada ou a sua capacidade de discernir dados tendenciosos ou informações ausentes é extremamente duvidosa (Dan Christian Ghattas, 2018).

Quatro anos após a Lei 38/2018, continuamos a ver hospitais a divulgar cirurgias e outras modificações ao nível do corpo e das características sexuais de bebés intersexo sem a existência de um comprovado risco para a saúde.

Muitas vezes, a resposta médica aos esforços legislativos para proibir tais procedimentos é assumir uma definição mais restrita de intersexo. Nessa definição, as pessoas intersexo seriam apenas aquelas com “verdadeiro hermafroditismo” (Cary Gabriel Costello, 2011). Protegem-se assim através da falsa narrativa de estarem a operar em bebés com uma “anomalia do sexo masculino” ou “anomalia do sexo feminino”, e não de uma pessoa intersexo. 

Isto é útil para a comunidade médica, uma vez que se definirem menos pessoas como intersexo, menos pessoas estão abrigadas por legislações que resguardam especificamente pessoas intersexo e mais procedimentos desnecessários podem ser realizados sem consentimento.

Este é o reflexo da falta de informação, e da desinformação, que existe sobre o que significa ser intersexo. Intersexo é um termo que cobre todas as variações nas características sexuais que ocorrem naturalmente na espécie humana, não um único tipo de corpo (Ação pela Identidade, 2021).

É necessário esclarecer a proibição legal da mutilação genital intersexo e outros procedimentos não consentidos medicamente desnecessários através de políticas de implementação que estabeleçam regras claras para o consentimento informado e garantam o efeito pretendido de proteger as pessoas intersexo de intervenções sem o seu consentimento.

Penso que o caminho seja universalizar a protecção das características sexuais, através de uma lei que proíba todas as modificações nas características sexuais, em todas as pessoas menores, salvo em situações não adiáveis de comprovado risco para a saúde, até ser possível obter o seu consentimento informado. O objectivo é parar assim a narrativa da “anomalia do sexo feminino/masculino” usada como estratégia para fugir às protecções da lei actual. 

Penso que o caminho seja universalizar a protecção das características sexuais, através de uma lei que proíba todas as modificações nas características sexuais, em todas as pessoas menores, salvo em situações não adiáveis de comprovado risco para a saúde, até ser possível obter o seu consentimento informado.

Obviamente, estas mudanças na legislação não podem ser desacompanhadas de mudanças na esfera médica. Se a estratégia para fugir às proteções da lei actual é alimentada por falta de informação, e desinformação, sobre o que significa ser intersexo, é preciso combatê-la. É urgente a formulação de medidas que busquem formar e preparar os serviços de saúde, e a sociedade num todo, para as pessoas intersexo e mudar como os seus corpos são discutidos.

Onde estão as pessoas intersexo das nossas vidas? Existem milhões de pessoas intersexo no mundo. Será que elas sabem que são intersexo? Será que os seus corpos não foram alterados e mantidos em segredo até hoje? Será que elas sabem que existem outras pessoas como elas? Eu diria que a maioria de nós conhece pelo menos uma pessoa intersexo, mas é precisamente a falta de educação no tema, e a urgência histórica que a medicina têm assumido para alterar e esconder os corpos das pessoas intersexo, que nos afasta de perceber o quão frequentes as variações naturais das características sexuais realmente são, e o quão presentes estas pessoas estão nas nossas vidas.

Deixo-vos com uma declaração de Mirian van der Have (2018), copresidente da OII Europe, que permanece actual: “Agradecemos os esforços colocados na lei para proteger as crianças intersexo. Mas, a menos que diretrizes de implementação muito claras estabeleçam uma estrutura que respeite plenamente os direitos fundamentais à autonomia e integridade corporal, a lei não será capaz de proteger as crianças intersexo de uma violação dos seus direitos humanos”.

 

Pedro Valente, Activista LGBTI+ e Técnico de Apoio Psicossocial