Dia da Saída do Armário: faz falta legislar sobre o outing?
No passado mês de Agosto, como resultado da lei que ficou conhecida como “Don’t Say Gay”, um distrito escolar da Flórida (EUA) adoptou novas regras que podem forçar as escolas a revelar as identidades LGBTI+ (lésbica, gay, bissexual, trans, intersexo, entre outras identidades minoritárias fora das normas de género) de estudantes às suas famílias, e proibir a sua autodeclaração por parte de docentes ou estudantes.
Outing refere-se ao acto de revelar sem consentimento, ou coagir a revelar, a orientação sexual, identidade de género, expressão de género ou características sexuais de uma pessoa. Este apresenta impacto na saúde mental e segurança das suas vítimas, e aumenta o seu risco de abuso e situação de sem-abrigo.
Segundo o 2ª Inquérito Europeu LGBTI da Agência para os Direitos Fundamentais da União Europeia, 87% das pessoas LGBTI de Portugal escondem em algum grau a sua identidade LGBTI, e 35% esconde-a de toda a gente. Nas escolas, 97% das pessoas inquiridas admitiu ter escondido de alguma forma a sua identidade.
Enquanto ativista e técnico de apoio psicossocial, estes dados são claros. Na minha intervenção e experiência em escolas, foram vários os casos de estudantes que escondiam o facto de serem LGBTI+ por medo de serem alvo de discriminação ou outing para as suas famílias. É frequente a família ser reportada como uma rede não segura para jovens revelarem estas identidades minoritárias. Quatro em cada dez estudantes LGBTI+ não o faz com nenhuma pessoa da família (FREE Project, 2022).
Mesmo assim, é importante para esta juventude conseguir partilhar com alguém quem é e as suas experiências. A escola deve servir como um espaço seguro para a exploração e revelação destas identidades, mas para isso é preciso que o controlo sobre a privacidade das mesmas prevaleça, e que esta seja garantida dentro e fora do contexto escolar. Nesse sentido, parece-me fundamental discutir e criar medidas específicas que previnam a divulgação não consentida (ou ‘outing’) da identidade LGBTI+ de jovens fora, e dentro, da escola.
É importante para esta juventude conseguir partilhar com alguém quem é e as suas experiências. A escola deve servir como um espaço seguro para a exploração e revelação destas identidades, mas para isso é preciso que a confidencialidade prevaleça, e que esta seja garantida dentro e fora do contexto escolar. [É] fundamental discutir e criar medidas específicas que previnam a divulgação não consentida (ou ‘outing’) da identidade LGBTI+ de jovens fora, e dentro, da escola.
Num país como Portugal, que tem assumido compromissos significativos para a protecção de direitos LGBTI+, a necessidade de uma acção legislativa para lidar com o outing e o direito a autodeclarar-se LGBTI+ está aberta. De modo a prevenir com sucesso o outing, e a combater obstáculos à vivência aberta de estudantes LGBTI+, proponho a adopção de mudanças no Estatuto do Aluno e Ética Escolar que permitam proteger o direito a autodeclarar a orientação sexual, identidade de género, expressão de género e características sexuais, e autodeterminar como, quando e a quem estas informações são reveladas. O respeito por estes direitos deve ser posicionado como deveres no Estatuto, e o outing classificado como uma infracção. Estas mudanças devem ser complementadas com campanhas de consciencialização sobre o direito à privacidade e efeitos nocivos do outing, dentro das escolas, mas também noutros contextos sociais.
Além destas medidas, é crucial a inclusão da expressão de género e das características sexuais como categorias protegidas de discriminação no referido Estatuto. Poderão existir excepções em que a revelação não-consentida pode ser considerada necessária, mas estas situações devem ser previstas, e deve ser privilegiado o sigilo e sensibilidade relativamente à condição potencial de vulnerabilidade. A palavra-chave é autonomia: autonomia para narrar a sua própria história e controlar a sua privacidade.
Refiro-me aqui a estudantes LGBTI+ por se tratar, tendo em conta a faixa etária e dependência do ponto de vista económico, de uma população com uma vulnerabilidade acrescida. Mas a discussão sobre o outing não deve parar por aqui. É legítimo analisar o benefício de regulamentar também sobre o outing e o direito a “sair do armário” em todas as esferas.
Revelar-se enquanto pessoa LGBTI+ pode ser uma experiência de reivindicação, de prazer e realização do nosso valor e dignidade, não apesar de quem somos, mas por quem nós somos. Mas nem todas as pessoas LGBTI+ vivem as mesmas oportunidades e para muitas de nós, revelar esta parte da nossa identidade é sinónimo de expor-se a violência, discriminação, estereótipos e preconceito.
O medo de exposição não deve ser um obstáculo ao processo de autorevelação enquanto pessoa LGBTI+. Viver com normas de género incutidas pode levar a sentimentos de culpa ou vergonha. Muita da nossa juventude utiliza a privacidade das suas identidades como uma “zona segura” onde pode processar quem é e o que sente no seu próprio ritmo, e construir uma identidade forte e autónoma. Quando expõem quem somos antes de nos sentirmos capazes, especialmente às nossas famílias, perdemos o senso de dignidade que resulta de tomar a decisão de se revelar LGBTI+.
Muita da nossa juventude utiliza a privacidade das suas identidades como uma “zona segura” onde pode processar quem é e o que sente no seu próprio ritmo, e construir uma identidade forte e autónoma.
Pedro Valente, Activista LGBTI+ e Técnico de Apoio Psicossocial