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Ângelo Fernandes: "Queremos que os homens vítimas de abuso sexual saibam que não estão sozinhos"

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Ângelo Fernandes tem 35 anos e acaba de fundar a Quebrar o Silêncio.

“Lembro-me de sentir uma vergonha imensa e uma culpa aterrorizante, como se fosse eu o culpado por toda a situação do abuso. E isso era horrível, era asfixiante. Havia dias que eu acordava já sufocado com isto. Houve momentos muito complicados para mim, porque por mais que dissesse, do ponto de vista racional, que não tinha culpa, o lado emotivo dizia o oposto”. Este excerto é parte de uma entrevista que Ângelo Fernandes concedeu ao dezanove.pt e que poderás ler a seguir.

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A Quebrar o Silêncio é a primeira associação portuguesa que se dedica exclusivamente ao apoio de homens e rapazes vítimas de abuso sexual. Com sede na baixa lisboeta, a associação oferece apoio gratuito, confidencial e anónimo, através de grupos de apoio e psicoterapia, acessível a qualquer homem. Para solicitar apoio, basta um primeiro contacto por telefone ou e-mail. Chegou a altura de quebrar o silêncio.

 

dezanove: Como é que só em 2017 se cria a primeira associação de apoio a homens vítimas de abuso sexual em Portugal? Por que decidiste avançar agora?

Ângelo Fernandes: Só avancei agora com a criação da associação porque quis ter a certeza de que estávamos preparados para o fazer. Por um lado, tinha a questão pessoal da psicoterapia que fiz em Manchester e queria ter a certeza de que esse processo estava terminado antes de regressar, por outro, havia também a necessidade de aprofundar melhor o meu conhecimento sobre a realidade do abuso sexual de homens. Isto é, apesar de a associação partir de uma experiência pessoal, isso não era suficiente para criar este projecto. Para isso conseguimos estabelecer uma série de contactos com associações internacionais, semelhantes à nossa, com as quais trabalhamos em rede e que partilham connosco o seu conhecimento e experiência nesta área.

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Porquê esta especificidade de criar esta associação de homens para homens?

Estamos em 2017, mas ainda é difícil para um homem falar dos seus sentimentos e emoções, e daí até um homem sentir-se seguro e confortável em dizer que foi vítima de abuso sexual e procurar ajuda há muito trabalho para fazer.

Daí consideramos ser fundamental ter um espaço seguro onde cada homem se sinta confortável para falar abertamente do que sente e partilhar a sua experiência. Existe todo um conjunto de factores relativos ao abuso sexual que afectam exclusivamente os homens e queremos garantir aos homens vítimas de abuso que encontrarão a ajuda necessária connosco. A experiência dos nossos parceiros internacionais diz-nos ainda que os homens sentem-se mais à vontade em ir a uma associação e procurar ajuda numa associação que trabalha exclusivamente com homens.

 

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A tua associação nasce da tua experiência pessoal. Consegues descrever os anos em que não pudeste viver uma vida plena?

As consequências do abuso sexual podem ser várias. Lembro-me de sentir uma vergonha imensa e uma culpa aterrorizante, como se fosse eu o culpado por toda a situação do abuso. E isso era horrível, era asfixiante. Havia dias que eu acordava já sufocado com isto. Houve momentos muito complicados para mim, porque por mais que dissesse, do ponto de vista racional, que não tinha culpa, o lado emotivo dizia o oposto. Isso é muito comum nas vítimas de abuso sexual.

Quando era criança cresci a achar que se os adultos, especialmente os homens, dessem atenção a uma criança, de seguida iam cobrar sexualmente por isso. Ele destruiu em mim a forma como eu, enquanto criança, via o papel e a responsabilidade dos adultos. E isso também afectou muito a forma como eu me relacionava intimamente, problemas de confiança, baixa auto-estima, medo de ser julgado pelos outros e também que ninguém compreendesse o que tinha passado aos 11 anos.

 

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Que ideias erradas estão associadas ao abuso sexual masculino?

Há muitas ideias erradas sobre o abuso sexual masculino. A ideia de que os homens não podem sequer ser vítimas de abuso é uma delas ou se um rapaz for sexualmente abusado por uma mulher é “sortudo” e teve sorte. Do mesmo modo que há o mito que a violação entre homens só acontece em prisões ou entre homossexuais ou se um rapaz for abuso por homem, esse rapaz tornar-se-á homossexual. Infelizmente a lista é extensa.

Estas ideias, além de erradas, não ajudam em nada que um homem que tenha sido vítima de abuso sexual se sinta capaz de pedir ajuda e procurar apoio. É por isso que queremos iniciar um diálogo aberto e sincero sobre a realidade do abuso sexual masculino, para haver informação e formação de públicos.

 

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Os dados do abuso sexual são preocupantes. Um em cada seis homens é vítima de experiências sexuais abusivas antes dos 18 anos de idade. Apenas 16% considera ter sido vítima. Em Portugal quase 21% das vítimas são menores de idade. O que falta fazer para mudar estes dados?

Os dados são realmente preocupantes e também é preocupante o facto de não se falar disto. Nós queremos alterar isso, queremos iniciar uma conversa sincera e aberta sobre esta realidade.

Muitas vezes o abuso sexual masculino pode ser mal diagnosticado e não ser visto como tal. Isso atribuído à força que os mitos sobre o abuso sexual tem, faz com que haja poucas denúncias dos casos masculinos. Quando lemos que no último Relatório Anual de Segurança Interna 20,7% das vítimas, menores de idade, eram rapazes sabemos que esse número está distante da realidade.

 

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A que objectivos e projectos se propõem a Quebrar o Silêncio?

Além da ajuda que queremos dar directamente aos homens vítimas de abuso sexual, queremos também ter um trabalho junto das escolas desde o ensino obrigatório ao superior/universitário e trabalhar e informar os jovens sobre esta realidade. A experiência e o conhecimento dos nossos parceiros internacionais dá-nos imensos recursos e ferramentas para trabalharmos com estes públicos. Achamos que é igualmente fundamental haver este tipo formação.

 

De que meios dispõem?

Nós temos um espaço na baixa lisboeta, bem localizado e bem servido de transportes públicos. Qualquer homem que precise de chegar até nós pode fazê-lo através do nosso site www.quebrarosilencio.pt ou através do número 910 846 589 ou do e-mail ajuda@quebrarosilencio.pt. Depois do primeiro contacto marcamos uma sessão introdutória para compreender qual a melhor resposta, em termos de serviços (grupos de apoio, psicoterapia) para esse homem.

 

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Homens que tenham sido vítimas de abuso, mesmo que há muitos anos, devem recorrer à associação ou isto é o levantar de um trauma que ‘é melhor ficar adormecido’?

A nós interessa-nos ajudar o homem que é ou foi vítima de abuso sexual. A altura que se deu o abuso não é relevante para ajudarmos esse homem. O trauma, mesmo que “adormecido”, está presente. As consequências do trauma, quando não são resolvidas, actuam, manifestam-se e afectam o dia-a-dia desse homem, mesmo que algumas dessas consequências possam ser menos claras ou manifestas.

Conheci casos no Reino Unido de homens que não conseguiam manter um emprego durante muito tempo ou relacionar-se intimamente com alguém e só após procurarem ajuda e resolverem o trauma, conseguiram recuperar o controlo de volta da sua vida.

 

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Se estes homens ou rapazes não estiverem em Lisboa de que forma os podem ajudar?

Neste momento, a melhor forma de ajudar um homem vítima de abuso sexual é vir até nós, ao nosso espaço. No entanto, nos casos onde isso seja impossível, fazemos um atendimento por e-mail ou telefónico.

 

E que passos se seguiriam nesse caso?

Neste momento, a nossa estrutura ainda não é a suficiente para abranger uma ajuda nacional realista. No entanto, tentaremos sempre dar a melhor resposta possível, dentro dos moldes, a qualquer apelo que recebamos fora de Lisboa.

Por exemplo, no nosso site há um conjunto de informações que podem ajudar um homem vítima de abuso sexual a compreender melhor esta realidade e aquilo pelo qual está a passar, ou ler outros materiais como o nosso Booklet.

 

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É no Reino Unido que conheces associações do género da tua. Como foi partilhar a tua história e conhecer situações idênticas?

Em Manchester conheci inicialmente a Survivors Manchester e posteriormente a SurvivorsUK, duas associações com quem comunicamos frequentemente e desenvolvemos projectos. Actualmente estamos a trocar ideias com a SurvivorsUK no desenvolvimento de um programa para Grupos de Apoio que eles próprios, apesar de terem 31 anos de existência, também estão agora a iniciar. Mas é com a Survivors Manchester que tudo começou, pela ajuda que recebi pessoalmente, como por todo o apoio que deram à nossa associação. O Duncan Craig, o fundador, tem sido incrível na forma como se tem relacionado connosco e na forma como nos tem ajudado.

 

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É hoje que estás a dar um passo na história que permitirá chegar a outras vítimas de abuso sexual e sensibilizar a sociedade em geral. Em primeiro lugar: que mensagem queres deixar às vítimas? E à sociedade que neste momento nos está a ler?

Antes de mais: queremos que os homens vítimas de abuso sexual saibam que não estão sozinhos e que não têm de sofrer em silêncio. Nós estamos aqui para os ajudar.

O nosso serviço é gratuito e temos uma política de confidencialidade que protege qualquer informação que seja partilhada connosco. Pessoalmente eu sei aquilo pelo que passei e só faz sentido para mim dar de volta a ajuda que recebi.

 

Entrevista de Paulo Monteiro

 

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