a ver

Condiciona quem quer avançar ou condiciona quem fica estanque?

As bodas de prata do Correntes d’Escritas, Encontro de Escritores de Expressão Ibérica, tiveram a intenção de celebrar os 50 anos do 25 de Abril.

 

Maria do Rosário Pedreira, poeta, editora e praticamente “da casa” (já que, à semelhança de outros escritores, é presença assídua no festival literário) interveio numa conversa cujo título era “Não Há Machado que Corte a Raiz ao Pensamento”. A frase pertence ao poema Livre, de Carlos de Oliveira, que declara que a ditadura pode controlar tudo, mas o pensamento permanecerá sempre em liberdade. 

Dado o contexto, passemos aos factos. 

Maria do Rosário Pedreira, na sua intervenção, afirmou existir uma “cultura de cancelamento que, aparentemente bem-intencionada, perdeu o bom senso e começou a condicionar o que dizemos, o que escrevemos, o que lemos”. Contou, então, o que apelidou de “o meu próprio calvário”, tendo em conta “os excessos que roçam o ridículo”.

Não foi a única palestrante das onze mesas de discussão a entender ser este o assunto mais pertinente, o problema mais aflitivo da nossa democracia e a censura mais feroz à sociedade nos dias de hoje. Não foi a única, mas foi a mais apaixonada.

Com duplo dom, da escrita e da oratória, sem surpresa e com invejável facilidade, conquistou a plateia.

“Durante a pandemia publiquei um romance holandês intitulado O desassossego da noite, da autoria de Marieke Lucas Rijneveld que, numa entrevista ao The Guardian, se tinha confessado uma pessoa não-binária. Comprei os direitos porque o achei notável, sobretudo tendo em conta a juventude de quem o escrevia. Quando o romance saiu em Portugal, escrevi no meu blogue um post intitulado Uma senhora escritora e que termina assim O desassossego da noite revela um talento invulgar em alguém tão jovem. Uma menina que é realmente uma senhora escritora!”.

O post deu origem a uma notificação da Comissão para a Igualdade de Género ”para eu apresentar a minha defesa, pois tinha sido objecto de cinco queixas. Afinal, eu, que julgava ter feito um elogio, chamara menina e senhora a uma pessoa não-binária, o que era um insulto”. Maria do Rosário Pedreira, virando-se para Pedro Abrunhosa, também convidado dessa conversa do Correntes d’Escritas, disse: “então o Pedro Abrunhosa pode cantar talvez foder, só quero o teu corpo e o teu sexo e não lhe acontece nada e eu, que uso uma expressão sóbria e elogiosa, quase sou processada?”

A editora prossegue com a história do seu “calvário”: “não imaginam o que foi escrever a biografia de Marieke Lucas Rijneveld na badana do seu segundo romance sem recorrer nem ao masculino, nem ao feminino. Não imaginam a ginástica necessária para escrever as linhas deste texto que se referem a essa pessoa”. 

Essa pessoa. Pronomes, nomes e adjectivos inclusivos arrancados a ferros. Uma espécie de birra, como o Zezinho que se atirou para o chão, a berrar num parque infantil, quando a mãe lhe exigiu que pedisse desculpa ao Chiquinho porque lhe ter chamado nomes. O Zezinho lá acabou por pedir desculpa, mas só porque a mãe o obrigou. O Chiquinho merecia era até ter ouvido mais!

Assim parecia Maria do Rosário Pedreira em frente a 400 pessoas, apenas com mais eloquência e sem se ter atirado para o chão. 

Não fica completamente claro se os exemplos que usou no seu discurso foram escolhidos para justificar a afirmação “excessos que roçam o ridículo”, aproveitando e fazendo uma espécie de bingo e divertindo o público, ou se Maria do Rosário Pedreira considera que todas as histórias que contou podem ser postas no mesmo saco de ter chamado menina e senhora a Marieke Lucas Rijneveld.

Fica aqui um desses exemplos de “excessos que roçam o ridículo: “retirada uma pintura renascentista do refeitório de um dos colégios de Oxford só porque dois alunos vegetarianos alegam não conseguir almoçar de frente para as perdizes mortas”.

Maria do Rosário Pedreira não só parece não ter entendido o que poderá significar para uma pessoa não-binária ser tratada por Uma menina que é realmente uma senhora escritora, como parece confundir a igualdade e visibilidade da linguagem inclusiva com policiamento e censura, já que afirmou “além do regresso da extrema-direita estamos constantemente a ser policiados, censurados”. 

O que mais surpreende nestas declarações é a profissão de quem as proferiu. Maria do Rosário Pedreira é editora, poeta, escritora e letrista. Além de conseguir reconhecer se há mestria alheia no uso das palavras, também Maria do Rosário Pedreira é dona da arte e engenho de escrever. E literatura não é gramática, ortografia, matemática ou uma ciência exacta. Literatura é arte, emoções, são viagens no tempo e no espaço, é um convite à reflexão sobre nós e os outros, é um desafio ao desenvolvimento intelectual e emocional. Literatura é tanta coisa. Mas tenho a certeza que a literatura não é (ou não deveria ser) conservadora, chata e estanque, presa a uma receita de bolo que vai ao forno sempre na mesma velhinha e enferrujada forma. 

Porque terão tanta resistência em abraçar a linguagem inclusiva alguns escritores e escritoras do século XXI quando o seu ganha-pão é inventar palavras, animais, países e até mundos? Que literatura e linguagem confortáveis são estas a que se querem prender?

Como se podem lamentar de “condicionamento”, como afirmou Maria do Rosário Pedreira, quando estão a condicionar a existência alheia ao não a reconhecer? Marieke não é uma menina, não é uma senhora, não é uma escritora. 

Naquela tarde de fevereiro, afinal, o machado cortou a raiz do pensamento. Porque o pensamento tem género. 

 

Adriana Dias

 

Um Comentário

  • zé onofre

    Viva
    Há assuntos que me causam confusão, não por serem complicados, mas por mal informado. Um deles é a questão – LGBTI+ –
    E a Linguística como se liga a esta questão?
    Para a entender e sem ofensa eis o que penso.
    Com menos idade, a ignorância, ocultar problemas, a realidade coberta sob um manto de medo, tudo era simples.
    Homem é Homem e apaixona-se por Mulher.
    Mulher é Mulher e apaixona-se por Homem.
    Havia pessoas esquisitas. Homens que gostavam de Homens. A restante sociedade resolvia com uma linguagem ofensiva – que irei citar por necessidade.
    Se era Homem era “paneleiro, panasca, maricas”, com as telenovelas brasileiras “bicha, boiola, veado, …
    Se era Mulher era “lésbica, fufa”, e com as telenovelas brasileiras, “sapatonas”, …
    Os tempos mudaram, os véus rasgaram-se, cada um assumiu as suas inclinações sexuais, para bem da sociedade e deles.
    Há coisas que me ultrapassam, por ver complexidade, onde há simplicidade.
    1º – há Pessoas: Homens e Mulheres.
    2º – há pessoas Homens que apenas se apaixonam (digamos assim) por Mulheres;
    há pessoas Mulheres que apenas se apaixonam por Homens.
    Estas pessoas são «Heterossexuais».
    3º – há pessoas Homens que apenas se apaixonam por Homens;
    – há pessoas Mulheres que apenas se apaixonam por Mulheres.
    Estas pessoas são “Homossexuais». Não entendo porque subagrupá-las em L – Lésbica e G – Gay. Para mim estes termos, defeito meu, transportam ainda um resto daquela ofensivas que referi atrás.
    4º – há pessoas que excecionais que não se apaixonam somente por Homens, ou somente por Mulheres, apaixonam-se por Pessoas.
    Pessoas “Bissexuais”.
    Resumindo, temos Pessoas – “HBH” – Homo… , Bi… Hétero…, …sexuais.
    5º – há pessoas que se dizem Trans.
    Trans – Pessoa A nasceu com genitália masculina, sente-se desconfortável no corpo com que a natureza a dotou, e deseja uma genitália feminina. Uma pessoa B nasceu com genitália feminina, sente-se desconfortável no corpo com que a natureza a dotou e deseja uma genitália masculina.
    Para isso, quer a Pessoa A e B fazem tratamentos hormonais e cirúrgicos para conseguirem o corpo onde se sentirão mais confortáveis. Estarei a ir bem? Vou supor que sim.
    Então A, que era Homem, depois dos tratamentos é agora Mulher.
    Então B, que era Mulher, depois dos tratamentos é agora Homem.
    Seguindo este raciocínio continuamos a ter um Homem e uma Mulher. Creio que o termo Trans apenas descrimina quem quis ser o que quis e está sempre a recordar o que não quis.
    Resumindo o que escrevi até aqui direi que continuamos a ter Pessoas – “HBH” – Homo… , Bi… Hétero…, …sexuais.
    Agora vem para mim a parte mais complicada que é a questão da Língua descriminar o grupo LGBTI+.
    Eu sei que a Língua vai sempre atrás um ou dois passos em relação à realidade. (Dois exemplos que mostram isto claramente. Aqui na minha aldeia quando alguém se diz “vítima” de alguma prepotência diz que “não sou nenhum carrasco”. Há aqui uma transformação semântica. De Carrasco que aplicava castigos à vítima, ao Carrasco que é agora “a Vítima”. Outro caso, e este para mim ridículo, é um fóssil monárquico que continua na nossa República. Todos sabemos que com a revolução republicana todos os títulos foram extintos, contudo ainda há quem fale no “duque de Bragança”, quando sabemos que duques, condes, condessas, marqueses e barões foram extintos vai fazer 114 anos).
    A Língua que inicialmente deveria refletir a supremacia Feminina – Matriarcado – foi lentamente refletindo o poder Masculino – ascensão do Patriarcado.
    Finalmente quando atingirmos uma relação de poder Feminino/Masculino paritário a Língua irá refletir essa dinâmica. Mas não vale a pena forçar. A Língua chegará lá depois da sociedade o ter feito.
    Posto isto, continuo a pensar que a sociedade é formada por Pessoas que estarão bem designadas por “o, a, os, as”.
    Penso que, como dizia Freinet, pedagogo francês acerca da aprendizagem, «não é por se puxar muito pelo rabo ao girino que ele chegará mais depressa a rã».
    Com interesse em querer compreender e sem ofensa,
    Zé Onofre