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Notas para construir uma utopia a partir de As Guerrilheiras, de Monique Wittig

Há uns meses, fiz parte de um momento de reflexão em grupo onde falámos sobre os nossos pais. Éramos maioritariamente mulheres, sentadas em círculo à volta de uma fogueira. Entre cerca de 30 pessoas, 20 choravam. A tensão era contagiante e as palavras, sussurradas, remetiam ao abandono, à dureza, ao desentendimento. Tomada também eu por todo aquele rancor, pensava que era preciso fazer algo para interromper a transmissão de tanta dor, entre gerações e entre pares, que fazia, e faz, da masculinidade uma coisa tão monstruosa e desumana. 

Pouco tempo depois, li As Guerrilheiras, de Monique Wittig. O livro, publicado em 1969, descreve uma sociedade de mulheres lésbicas que vive numa utopia feminista. Ao ver essa sociedade ameaçada pela chegada de um exército masculino, as guerrilheiras são obrigadas a defender a sua forma de vida. Wittig apresenta uma série de estratégias para a construção e defesa desta utopia, como a colectividade e uma estrutura narrativa experimental, que tenta romper com a linguagem aqui apresentada como uma ferramenta do patriarcado.

Mas uma das estratégias às quais estas mulheres mais recorrem é a violência. Aliás, o título indica-nos logo de início que elas são, acima de tudo, guerrilheiras. Esta violência é, claro, uma resposta à opressão a que estão sujeitas. Mas é também uma violência em vários momentos “desenfreada”, infligida com um “entusiasmo devastador”. E é colocada por elas como uma necessidade, o único caminho possível.

Estas passagens causavam-me desconforto. Não por pensar que há algo moralmente errado em ver vítimas a dar resposta aos seus opressores, mas porque a ideia de uma sociedade que tenha como génese a violência remete-me, ao contrário, para uma distopia. É possível sonhar com este mundo melhor que Wittig propõe sem recorrer aos mesmos padrões destrutivos que nos condenam ao mundo como ele é?

Durante os dias em que estava a terminar de ler As Guerrilheiras, algumas coisas aconteciam no mundo real que me afastavam ainda mais desta sociedade imaginada: Na Uganda, Dickson Ndiema queimou viva a sua ex-namorada, a atleta olímpica Rebecca Cheptegei; Na França, ficou conhecido o caso de Dominique Pelicot, que ao longo de vários anos drogou e convidou 50 homens para violarem a sua mulher, Gisèle Pelicot; no Brasil, o Ministro dos Direitos Humanos Sílvio Almeida foi denunciado por várias mulheres de assédio sexual. Uma das denúncias veio de Anielle Franco, Ministra da Igualdade Racial e irmã de Marielle Franco, cujo assassinato foi também ordenado e perpetrado por homens. E pensava, como responder senão com violência? E ao mesmo tempo pensava que, se fossem as mulheres fossem dar resposta aos homens na mesma moeda, não sobraria mundo.

E talvez seja mesmo isso. “Começar do zero”, como propõe a obra de Wittig.  

E mesmo assim… Não sei se é da minha natureza idealista, das minhas outras leituras, ou de uma vontade mais prática de preservar um mundo para que possamos sequer pensar em construir nele uma utopia, mas mesmo mergulhada na raiva que estas notícias me causavam, incendiada pelo livro que estava a ler, procurava outro caminho. E refugiei-me numa citação de James Baldwin: 

“O amor nunca foi um movimento popular. E ninguém nunca quis, realmente, ser livre. O mundo é preservado (…) pelo amor e paixão de muito poucas pessoas. Senão, claro, podes desesperar”. 

Voltei a folhear o livro, ainda à procura de respostas que já tinha percebido que não ia encontrar. Encontrei outra estratégia de luta destas mulheres: a memória colectiva, a preservação de tradições, rituais e símbolos – entre os quais o círculo, que surge desenhado em várias páginas. O círculo é frequentemente associado ao feminino, e Wittig atribui-lhe vários significados, incluindo a representação dos ciclos e a rejeição da linearidade associada ao masculino. 

Os círculos d’As Guerrilheiras lembraram-me do círculo de reflexão do qual fiz parte. Ao mesmo tempo que nós, maioritariamente mulheres, sentimos que tínhamos criado um espaço de partilha quase sagrado, sentimos também que a mágoa que despejámos para dentro do círculo ficou ali presa, sem ter para onde sair. 

Há passagens em As Guerrilheiras que defendem o abandono de símbolos antigos, que já estão demasiado distantes para poderem representar fielmente o feminino. E chego ao fim deste artigo sem respostas concretas sobre como se constrói uma utopia, mas pergunto-me se não poderá passar por aí. Pergunto-me se o caminho não está algures entre, ou além, do binário. Do masculino e feminino, opressor e oprimido. A que outras formas podemos recorrer, que não sejam lineares e circulares? Como quebramos os ciclos em que estamos presos, para podermos pensar em começar novos?

Tal como eu, Wittig não prometeu respostas. Em As Guerrilheiras, encontram-se apenas sugestões, ideias para um brainstorming que, na verdade, é constante e para sempre. E para nos ajudar a pensar, termino esta reflexão com o final da citação de Baldwin: 

“Anda pelas ruas de qualquer cidade, em qualquer tarde, e olha em volta. Tens que te lembrar que o que estás a ver és tu. Poderias ser aquela pessoa. Poderias ser aquele monstro, aquele polícia. E tens que decidir, dentro de ti, não o ser.”

 

Título original: Les Guérillères

Editora: Antígona

Tradução: Inês Dias
Ilustração da capa: Patrícia Lino
Concepção gráfica: Rui Silva
1.ª edição Julho 2024
Páginas 184
Formato 13,5 x 21 cm
ISBN 978‑972‑608‑459-4

 

Maria Kopke