A arte da fuga de Eddy Bellegueule
“Da minha infância, não tenho nenhuma recordação feliz. Não quero dizer que, durante esses anos, não experimentei nenhum sentimento de felicidade ou de alegria. Simplesmente, o sofrimento é totalitário: tudo o que não entra no seu sistema, ele faz com que desapareça”, escreveu Édouard Louis no arranque do livro “Acabar com Eddy Bellegueule”, lançado em França em Janeiro do ano passado e recentemente em Portugal pela Fumo Editora, com tradução do crítico António Guerreiro.
Um sucesso editorial e de crítica de uma obra autobiográfica que mostrou os mecanismos da violência exercida a um rapaz homossexual na França profunda, ignorante, pobre. Esse rapaz, Eddy Bellegueule – “Eddy”, nome escolhido pelo pai inspirado nas séries norte-americanas – é agora Édouard Louis, alguém que quer contar, mostrar, exortar à fuga como possibilidade de salvação. É uma nova voz com uma estreia marcante.
Em “Acabar com Eddy Bellegueule”, através da história do seu sofrimento e da estruturação da sua identidade, Édouard Louis mostra uma realidade que se auto-reproduz, gente presa a um destino que não podem traçar. Sob influência do sociólogo Pierre Bourdieu e de Didier Eribon (filósofo autor de “Retour à Reims”), a história apresenta as suas raízes proletárias. Édouard Louis não se embaraça no que toca à sua consciência de classe, uma marca identitária, e, como refere Eribon, "chama as coisas pelos nomes": “classe operária”, “burgueses” (através do uso depreciativo do seu pai), “meios”.
Este é um meio em que a pobreza e a falta de perspectivas – os rapazes vão para as fábricas e as raparigas para caixa de supermercado depois de abandonarem a escola precocemente – são o próprio sistema. Eddy Bellegueule cresce, encurralado, numa comunidade que lhe recorda constantemente a sua diferença. Quer através das agressões na escola (“És tu, o paneleiro?”, “Olha, é o Bellegueule, a bicha”) ou a violência na comunidade, em casa, não-física, das comparações com o ideal masculino ou com o estereótipo da “bicha efeminada”. Logo desde o início, Eddy Bellegueule irrompeu na vida diária de Hallencourt, aldeia do norte de França, como um fenómeno raro e incompreensível. Um rapaz que deveria ser “um duro”, tal como os restantes rapazes da aldeia, mas ao qual foi “diagnosticado” o “problema” logo “aos primeiros meses de vida”: a voz aguda, os movimentos das mãos, o modo de andar.
Num contexto em que a homofobia e o racismo impregnam a vivência diária, e em que a violência e a humilhação são parte da vida de quem é diferente, a única hipótese é a fuga. Este também é um livro sobre uma derrota: o esgotar de todas as possibilidades de inclusão apesar de uma intensa luta exterior e interior e da admissão de que a fuga é a única escolha - e uma vitória: a de ter conseguido sair e fruir a vida em liberdade.
Classificação: 4 estrelas em 5
Pedro Garcia