opinião

A caixa de Pandora foi aberta. E agora? (I)

Um dos mais famosos mitos gregos conta a história de Pandora. Resumidamente, Zeus deu uma caixa a Pandora com a condição de que esta nunca a abrisse. Nela tinha guardado todos os males da Humanidade. Pandora não resistiu e abriu a dita caixa, fechando-a a tempo de guardar a esperança. O mal, porém, estava feito.

Creio que falo por uma boa parte das pessoas quando digo que até recentemente tivemos a ilusão de que as coisas não andariam para trás. Teoricamente havia essa possibilidade, mas nunca seria no nosso tempo. E, ainda assim, aqui estamos: a caixa de Pandora foi aberta.

Para percebermos no que estamos metidos, temos de aceitar que hoje é a polarização ideológica que determina boa parte das dinâmicas sociais e políticas. E que esta está a ser vantajosa para a direita radical. Os temas LGBT – tal como outros – são instrumentalizados (nas redes sociais e não só) com grande êxito. Usam-se grupos tradicionalmente marginalizados e cria-se uma narrativa de que estão a atacar a maioria “de bem”. O objectivo é pôr-nos na ordem (como avisava o cartaz do Chega espalhado pelas rotundas do país).

Todavia, não existe apenas o problema da propaganda da direita radical.
Os LGBT têm tido dificuldade em conseguir chegar ao homem e à mulher comuns. Sim, os cisgénero e heterossexuais, nossos potenciais aliados. A mensagem LGBT perdeu eficácia. Temo que seja facilmente utilizada como lenha para a fogueira da direita radical. Há margem para reavaliar o modo, a terminologia e os pressupostos com que se discutem os temas.

Comecemos pela sigla.
Estou convencido de que nem os próprios conhecem com rigor o que são e o que significam a totalidade das letras da sigla LGBTQIA+… Na mesma linha de raciocínio, atentemos na campanha recente da Fox Life para familiarizar os portugueses com estes termos. Acham que foi eficaz? “Binómio”, “não-binário” são algumas das palavras usadas. As pessoas não conhecem estas palavras; não falam este latim. Alguns (muito poucos) talvez se lembrem de ter aprendido na escola “uma coisa chamada Binómio de Newton”…
Estas realidades existem e merecem ser discutidas. Estas pessoas merecem ser defendidas e respeitadas. Tenho, porém, a maior das dúvidas quanto à eficácia do modo como são apresentadas.

Os pronomes também não funcionam “lá fora”, no mundo real da paragem do autocarro, no refeitório da empresa ou na sala de espera da repartição. O mundo sujo, frio e difícil do dia a dia da maioria dos portugueses. Em que a complacência pelos constructos do género é mínima.
Deixo-vos uma pequena história pessoal: numa reunião de uma marcha LGBT, todos se apresentaram pelo nome e pronome. Como sou medíocre a memorizar nomes, habituei-me a socorrer-me dos pronomes (presumptivos, claro está). Nesta reunião, praticamente não abri a boca com medo de ofender alguém (havia alguns em que a aparência não correspondia ao pronome). Não é difícil imaginar que episódios como este possam ser um obstáculo à generalidade dos que não sendo LGBT (ou até sendo) gostariam de aliar-se. Eu percebo que há pessoas para quem esta terminologia e “abecedário” faça sentido. Também sei que o problema do género “dá pano para mangas”. Mas este “vestuário” não serve. A discussão pode e deve continuar, até com um certo grau de experimentalismo. Contudo, deve ser inteligível para as pessoas comuns, se quisermos fazer delas nossas aliadas.

O problema não é apenas a linguagem hermética.
A discussão dos temas LGBT tem uma dignidade e um lugar próprios. A questão é estar “ensopada” num ethos puritano que estreita a discussão.
Só pode falar dos temas quem os vive? Lugar de fala? Muito bem. Perceber que as experiências do próprio são fundamentais na compreensão dos fenómenos é sensato. E a razão? Sim, o logos dos gregos. Não é o primado da discussão racional um adquirido civilizacional? O que permite, aliás, a criação de solidariedade entre grupos diferentes. Eu não tenho que ser negro para ser contra o racismo. Não tenho de ser pobre para indignar-me com a injustiça social. Não tenho de ser imigrante para me revoltar quando os encostam à parede. E, no teatro, posso ser cis ao dar corpo à alma de um trans (e o inverso também). Posso ser eu próprio e ser pelo outro. Devo sê-lo. É isso que une as pessoas. Mesmo sabendo que as diferenças de classe, género ou nacionalidade as tentam separar. E, já agora, quando duas pessoas T discordarem, quem “desempata”? Ou quando dois gays não se entenderem? Ou quando os argumentos entre feministas e os colectivos gay colidirem?

Kamala is for they/them, President Trump is for you.
Kamala é por eles/elas; o Presidente Trump é por ti (tradução minha)

O que isto mostra é uma profunda desconexão entre o discurso LGBT e o resto das pessoas. E o pior é que não é só uma discussão ineficaz. Afasta potenciais aliados e oferece de bandeja uma arma de arremesso à direita radical. Ou pensam que eles não nos retratarão como um bando de pretensos sábios a discutir o sexo dos anjos e a dar lições de moral ao povo? Esta gente não brinca em serviço. Vejam o slogan da campanha de Trump em 2024 e que terá sido fulcral para conquistar votos ao Partido Democrata. Se acham que as ondas deste tsunami não chegam cá… Bem, pensem de novo.

Uma abordagem mais pragmática não vai, por si só, resolver o problema. Pode, porém, aligeirar o ambiente de guerra cultural que só ajuda a direita radical. Mas isso não é uma antecâmara para a cedência de direitos. Nem para abandonar ninguém. A retirada de direitos até pode começar pelos que são percepcionados como mais vulneráveis (as pessoas T, por exemplo). Começam nuns e só acabam quando nos puserem “na ordem”. A todos. Portanto, trata-se de impedir o quebrar de qualquer elo da cadeia: todas as letras do LGBT contam de igual modo. E se como comunidade formos mais fortes, conseguiremos navegar melhor nestes tempos sombrios.

Este não é o momento para divisões.
Há certamente muito a separar-nos: diferentes valores e olhares sobre o mundo. Chegámos, porém, a um ponto em que mais do que ser a favor de algo é preciso eficácia em ser contra. Contra o pensamento, o discurso e a acção da renascida direita radical. Contra esta mancha que está a espalhar-se e a envenenar tudo à sua volta.

Dito tudo isto… O que podemos fazer?

Parar de falar latim!
Se queremos passar a mensagem, temos de falar de forma a sermos entendidos. Como Martinho Lutero ao usar a língua “vernácula” na sua Reforma. Acham que não resulta? Perguntem aos países do norte da Europa.

Sermos inclusivos.
Não existe só uma forma de se ser pró-LGBT. Avaliar a pertinência das ideias sobretudo pela sua racionalidade e não apenas (ou sobretudo) pelo lugar de fala. A pluralidade de visões só irá enriquecer-nos e atrair aliados.

Fazer mais trabalho no terreno.
Temos de começar a organizar-nos. Contudo, isso fica para uma segunda (e última) parte.

João Francisco

Um Comentário

  • Jor

    “Lo que esto demuestra es una profunda desconexión entre el discurso LGBT y el resto de la población. Y lo peor es que no solo es un debate ineficaz. Aísla a posibles aliados y ofrece un arma en bandeja de plata a la derecha radical. ¿O creen que no nos presentarán como un grupo de supuestos sabios que discuten sobre el sexo de los ángeles y dan lecciones morales al pueblo? Esta gente no se anda con rodeos. Basta con mirar el eslogan de la campaña de Trump para 2024, que fue crucial para ganar votos para el Partido Demócrata. Si creen que las olas de este tsunami no llegarán hasta aquí… Bueno, piénsenlo de nuevo.”

    Absolutamente de acuerdo. Especialmente en el caso del uso de pronombres, algo que más que una herramienta de mejora, supone una limitación a la expresión que imponemos a los demás.

    Gran texto. Un saludo

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