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Nem na mata se encontram histórias assim

A primeira vez

peter pina

A primeira vez que me apaixonei, tinha 14 anos. 14 anos. Eu tinha 14 anos. Aos 14 anos eu já sabia que era gay. Aos 14 anos, eu já sabia tudo. A ventoinha no chão. O calor. Os pés que sentem a frescura da roda que roda e gira. Um velho gira-discos. Encostado à parede do lado direito do sótão, está um móvel antigo que abraça um velho gira-discos. Conta histórias. Contar-me-ia se pudesse, muitas histórias. Falar-me-ia da viagem da Alemanha. Das festas de emigrantes. E dos discos. Bee Gees. Bob Dylan. Paul Simon. The Rolling Stones. 

 

20 anos depois da Alemanha, o mesmo gira-discos torna-se a testemunha dos pés deitados no chão na frescura da roda que roda e gira. A paixão. A primeira vez que me apaixonei, tinha 14 anos. Na verdade, não me apaixonei. Eu queria estar apaixonado. A paixão. É isso. Eu estava apaixonado pela paixão. É assim que se diz. Sábados à tarde. Muitos sábados à tarde depois. Ele chamava-se Pedro. Era loiro. Ouvia os antigos discos comigo. Tinha borbulhas na cara. E uma namorada muito feia. 

O sótão. Continuamos no sótão calorento. As mãos mudam o disco, já arranhado, mas que deseja envolver-nos. Depois da próxima música, vamos fazer uns broches. Diz o Pedro. Não o disco. Esse agarra-se à agulha que treme de medo. Eu rio. Talvez esta música não seja a sério. Talvez não seja mesmo uma música. A agulha salta. Os novos acordes desapertam um fecho. O refrão é repetido várias vezes de joelhos. A música era mesmo uma música. 

O velho gira-discos apreensivo observa o cenário. As almofadas. O velho gira-discos observa as almofadas no chão. Azuis. As almofadas são azuis. Calor. A música geme. Jane Birkin & Serge Gainsbourg. Je vais et je viens. Entre tes reins. Je vais et je viens. Entre tes reins. Et je me retiens. O gira-discos. As almofadas. A dor. Vou tentar pensar nisto como um prazer. Penso. Sangue. Sangue na almofada. A agulha levanta-se. A música termina. À roda. O disco continua à roda, à roda, à roda, como que à espera de um abraço. A torneira. Ouço a água. Até logo. Diz ele. Até logo. 

As almofadas azuis escondem o meu corpo despido. Silêncio. Nenhumas mãos descem a agulha. Nenhumas mãos mudam o disco. O que é que aconteceu? Solidão. O velho gira-discos observa agora a solidão e o sangue na almofada. Água. Esfrego a almofada para que se esqueça da minha primeira vez. Da dor. Do sangue. Do abraço não dado. E da solidão. 

Cartas. Escrevo-lhe cartas. Estamos no tempo dos manuscritos dobrados à mão, guardados com muito cuidado no envelope. Estamos no tempo da língua ter sabor a cola. Estamos no tempo de esperar por uma resposta que nunca chega. O Pedro. Penso no Pedro. Penso no próximo fim-de-semana. Os olhos sonham as almofadas azuis e os discos com as capas rasgadas. Postais. O Pedro faz colecção de postais. Estou em Coimbra. Eu ofereço-lhe postais. Ele fode-me. Ansiedade. Vontade. Desejo. Saudade. Quero estar com ele. Preciso de estar com ele. Sexta-feira ele fode-me. O gira-discos não volta a tocar durante todo o fim-de-semana. Aguarda em silêncio a próxima sexta-feira à noite. A agulha penetra no disco. A música toca. Todas as sextas-feiras, o gira-discos insiste em tocar exactamente a mesma música. 

O Pedro começou a foder-me todos os fins-de-semana. Com as borbulhas na cara e tudo. Quatro anos. São músicas que duram quatro anos. Isto é exactamente o quê? Pergunto. É para experimentar uma coisa nova. Diz. Uma coisa nova, foi há quatro anos atrás. Isto agora já é uma coisa velha. A porta. Ouço a porta fechar-se. Quase que juro que um disco se partiu. A agulha permanece imóvel. Os pés já não sentem a frescura da roda que roda e gira. Afinal a música não era mesmo uma música. Foi a última vez que o vi. Ele nunca me beijou. 

 

Peter Pina