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Acompanhei um amigo ao hospital para ter acesso à profilaxia pós-exposição. Foi isto que aconteceu

No passado dia 13 de Julho, pelas 14h, acompanhei um amigo ao Serviço de Urgência do Centro Hospitalar São João, no Porto, dado que este se encontrava numa situação que justificava o recurso a este serviço. Horas antes, por volta das 18h do dia anterior, acabara de ter uma relação sexual ocasional com outro homem, onde praticara sexo anal receptivo e o preservativo rompera após a ejaculação, tendo ocorrido contacto com sémen.

Dado que o meu amigo não conhecia o estado clínico do parceiro no que a Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) diz respeito, decidiu dirigir-se rapidamente ao Centro de Aconselhamento e Detecção Precoce do VIH (CAD) mais próximo da sua zona de residência, de forma a realizar o teste para a deteção do VIH, explicar o sucedido e compreender que medidas deviam ser adoptadas neste tipo de situações. O primeiro teste realizado ao VIH foi negativo, no entanto, e tal como o técnico de saúde lhe explicou, este não era suficiente para avaliar o seu estado clínico atual, dado que se este tivesse contraído uma infecção por VIH, esta só se iria manifestar na corrente sanguínea num período compreendido entre três a seis meses. Era portanto urgente adoptar uma medida preventiva com base em anti-retrovirais (Profilaxia Pós-Exposição) no menor espaço de tempo possível, ou seja, preferencialmente até 48h após o término da relação sexual. Neste sentido, e dado que se tratava de uma corrida contra o tempo, foi-lhe aconselhado a dirigir-se ao Centro Hospitalar São João para ter acesso ao tratamento por Profilaxia Pós-Exposição (PPE).

O que devia ser um processo rápido, eficaz e sobretudo informado por parte dos profissionais de saúde desta unidade hospitalar revelou ser precisamente o contrário, traduzindo-se em longas horas de espera e desinformação médica acerca do tratamento supracitado.

O que devia ser um processo rápido, eficaz e sobretudo informado por parte dos profissionais de saúde desta unidade hospitalar revelou ser precisamente o contrário, traduzindo-se em longas horas de espera e desinformação médica acerca do tratamento

No momento da Triagem no Serviço de Urgência desta unidade hospitalar, e após uma explicação extensa do ocorrido, atribuíram ao meu amigo uma pulseira verde (relativa a casos pouco urgentes), sendo posteriormente encaminhado para a área destinada ao tratamento dos mesmos. Lá aguardamos três horas, até que ele foi atendido por uma médica, à qual voltou a relatar o que tinha acontecido no dia anterior. Esta, quando ele lhe pediu para ter acesso ao tratamento por Profilaxia Pós-Exposição, mostrou relutância, argumentando que “este apenas se destinava aos profissionais de saúde”, pelo que o mais sensato, na óptica da mesma, seria “aguardar seis meses e voltar a repetir o teste para a detecção do VIH”, uma vez que, “agora não havia nada a fazer”. Como ele é uma pessoa informada, tentou explicar-lhe que este tratamento não estava apenas disponível para os profissionais de saúde, mas também à comunidade em geral (desde que, claro, a exposição o justificasse, o que era o seu caso) e que era urgente ter acesso ao mesmo, uma vez que a eficácia deste reduz drasticamente após 48h e 24h já tinham passado. Pediu ainda à drª. para falar directamente com um infecciologista de serviço, mas esta não consentiu, referindo que apenas iria fazer análises sanguíneas, não especificando quais quando interrogada.
Sem uma resposta esclarecedora da profissional de saúde em causa, e na impossibilidade de diálogo com a mesma, o meu amigo foi posteriormente encaminhado para a Zona Amarela do Centro Hospitalar São João, onde realizou análises sanguíneas e aguardou mais três horas pelos resultados das mesmas. Após este período, foi-lhe referido por uma médica que se encontrava naquela área que ir-se-ia dar a mudança de turno médico, pelo que o seu processo clínico iria ser transferido para outro profissional. É nesta mudança de turno, que ele é encaminhado para um infecciologista, ao qual, numa primeira abordagem, voltou a relatar o que se tinha passado, conforme previamente lhe pedira. Este mostrou-se surpreso e/ou indignado com a resposta médica da colega, dado que era óbvio que o meu amigo reunia as condições para ter acesso ao tratamento por Profilaxia Pós-Exposição, referindo ainda que o mesmo devia ser prescrito o mais rapidamente possível, dado que o tempo urgia. Informou-o também, uma vez que ele não conhecia a especificidade das análises sanguíneas pedidas pela drª., que a colega apenas pedira uma em específico: o teste para a detecção do VIH, banalizando assim outras fulcrais como a detecção de hepatites, gonorreia, sífilis, entre outras. Tal acto da profissional de saúde em causa constituiu um erro de diagnóstico grave, o qual podia ter consequência irreversíveis na sua saúde.
O infecciologista pediu então as restantes análises sanguíneas e após os resultados das mesmas foi-lhe, finalmente, prescrito o tratamento por Profilaxia Pós-Exposição, assim como a marcação de uma consulta externa naquela unidade hospitalar no dia seguinte.

Até que ponto a saúde é um direito em Portugal? Os profissionais de saúde não deviam ser os primeiros a conhecer os (ainda poucos) tratamentos disponíveis para o VIH/SIDA? E se fosse com outro utente menos informado?

O que acabo de relatar traduz-se, no mínimo, num erro de diagnóstico grave por parte de alguém com formação académica certificada, mas que, no entanto, desconhece a legislação portuguesa em vigor (Recomendações Portuguesas para o Tratamento da Infecção VIH/SIDA), a qual deve ser cumprida para casos como o do meu amigo. Friso que a mesma é bastante clara no acesso ao tratamento por Profilaxia Pós-Exposição, devendo este ser aplicado quando ocorram situações que incluam “exposições em relações sexuais não protegidas, nomeadamente sem preservativo ou em que o preservativo rompeu ou estava mal colocado”. É fulcral também que a “terapêutica anti-retrovírica deva ser iniciada, se for o caso, o mais precocemente possível, preferencialmente nas primeiras duas horas e não está indicada após 72h da exposição; o utente deve ser encaminhado a consulta de um especialista na área VIH/SIDA”. Se esta não for iniciada no período descrito anteriormente “a PEP deixa de ser eficaz”, ficando a saúde do utente comprometida.
Temos agido de acordo com os procedimentos legais disponíveis e o presente testemunho apenas pretende mostrar que, mesmo entre os profissionais de saúde, o panorama actual prima pela ignorância, sendo preferível remeter os utentes que passem por situações idênticas para a inércia… Até que ponto a saúde é um direito em Portugal? Os profissionais de saúde não deviam ser os primeiros a conhecer os (ainda poucos) tratamentos disponíveis para o VIH/SIDA? E se fosse com outro utente menos informado? Teria de esperar seis meses e, quem sabe, conviver uma vida inteira com um erro que podia ser perfeitamente resolvido?

 

Testemunho de um leitor do dezanove.pt devidamente identificado

23 Comentários

  • Paulo

    Uma vergonha.

    O paciente devia fazer uma queixa no livro amarelo dos hospitais pelo qual passou e adicionalmente fazer chegar ao ministério da saúde e ao próprio ministro da saúde.
    Quem nos defenderá?
    Temos de agir no momento certo.

    Neste caso acabou bem mas pergunto, quantos ficaram pelo caminho!?

  • Anónimo

    A comunidade médica em Portugal continua bastante atrasada em alguns aspectos. Médicos homofóbicos deveriam ter as suas identidades expostas para podermos saber o que nos espera.

  • Francisco

    Subscrevo o que o Paulo disse. É muito importante fazer esta informação chegar à Direcção do Hospital e ao Ministério da Saúde.

  • Anónimo

    Não venho aqui acrescentar nada de novo com o que já foi dito, mas realço a necessidade de procederem a uma queixa contra essa profissional. Esta soberba de determinados médicos, não pode continuar. Neste caso o paciente era uma pessoa informada, outros casos poderão não ser assim.

  • Anónimo

    Boa tarde,

    Além de termos escrito no livro de reclamações desta unidade hospitalar, reclamação esta que foi endereçada ao Ministério da Saúde, participamos também à Inspecção-Geral das Actividades em Saúde, Ordem dos Médicos (onde pedimos formalmente o número de cédula profissional da médica em causa e que até hoje não nos foi cedido…) e enviamos também a cópia ao Centro Hospitalar São João. A única resposta que recebemos deu-se hoje pela Inspecção Geral das Actividades em Saúde que diz estar a analisar o caso, tal como pedimos. As outras duas entidades ainda não se manifestaram.

    Agradecemos os comentários e conselhos, é importante que este tema seja divulgado.

    Cumprimentos

  • Mónica Ribeiro

    Eis porque um país tão pequeno e com tantos recursos, como Portugal, está quase equiparado com 1 país de 3º mundo. Além da grave falte de formação e informação, os principais pilares, que o sustentam, Saúde, Justiça, Segurança e Ensino estão podres e sem consciência…

  • João Silva

    Queixa imediata à ERS, IGAS e Ordem dos Médicos! Passei por uma situação exatamente igual, mas em Santa Maria. Fui completamente minimizado e gozado, pelas administrativas e pelo pessoal médico. Enfermeiros ainda se safaram… A ILGA fez a uns tempos um estudo sobre o acesso à saúde da população LGBT que mostra inequivocamente o que ainda é preciso fazer para cuidados de saúde adequados à população LGBT. Quando li os resultados fiquei chocado (não surpreso) com os relatos que o estudo registava do que era dito por médicos e pela falta de informação dos mesmos 🙁

  • Anónimo

    É tudo muito coiso e tal e ficam indignados.
    Eu fico indignado é com a factura que o contribuinte paga porque os meninos se divertem e dão uma pinada sem preservativo. Isso é que me incomoda.
    Não gozem com o dinheiro que tanto nos custa a ganhar e é descontado para a SS.

  • Fllipper

    Boa tarde.

    Já tenho a experiência de 2 amigos (alturas diferentes) que foram à urgência do Hospital de Santa Maria, e tiveram o acesso a profilaxia pôs exposição sem qualquer dificuldade, após verificar o sucedido.
    Nem em todo o lado vamos mal…

  • Paulo Góis

    Também me indigna mas é o que temos. Não temos nada que pagar a vida loca dos outros quando somos regrados, usamos preservativo e muitas vezes até no sexo oral quando desconfiamos do parceiro.

    Diz que o preservativo rompeu após a ejaculação, logo quando a actividade é menos vigorosa e a maioria dos homens até pára. Sabe qual a percentagem de preservativos que se rompem? Se soubesse não usava este argumento para desculpar promiscuidades.

  • FS

    O(a) senhor(a) leu atentamente o texto? O preservativo rompeu, algo que pode acontecer com qualquer pessoa, hetero ou não… Eu fico indignado com pensamentos como o seu.

  • João

    Essa reação é no mínimo reveladora de uma ignorância atroz e pode mesmo ser considerada criminosa.
    O serviço nacional de saúde não foi feito para ser usado só por quem desconta. O beneficio de quem desconta é obtido por viver numa sociedade saudável é do interesse de todos que “TODOS” estejam saudáveis ou tornam-se focos de infeção para os restantes.
    Além disso quem lhe diz que o utente neste caso não desconta mais!!!

  • Anónimo

    Realmente o caso aqui exposto não resolve nada. A queixa oficial sim, pode ajudar a apurar responsabilidades e a prevenir novos casos.

  • FKA

    Não se trata de nenhum caso de homofobia, apenas um exemplo do mau funcionamento do SNS, fruto do governo e população achar que se consegue este luxo de 1o mundo com os salários e recursos, agravados com a austeridade dos últimos anos, que existem no nosso pais. Alguem que de um exemplo de um pais pobre como o nosso com um SNS semelhante!
    Sou profissional de saúde e sei que o ambiente hospitalar encontra-se de tal forma agressivo, no que toca a condições de trabalho, que um caso simples como este que no mínimo deveria ter sido logo visto pelo insectologista é atrasado porque os colegas habitualmente não estão para virem prestar os seus serviços sem muita boa fundamentação da parte dos medicos gerais que 1o abordam os doentes.. Felizmente terminou bem. No entanto, este problema, tal como tantos outros que temos no nosso país, só se resolve com recursos que tardam em chegar.

  • Anónimo

    “Alguem que de um exemplo de um pais pobre como o nosso com um SNS semelhante!”
    Um país do Médio Oriente chamado Omã. Mas como é, vamos basear-nos nos países mais pobres que o nosso ou nos países mais ricos que o nosso?

  • Pedro Silvério Marques

    Porque a informação sobre apresentação de queixas pode induzir em erro, resumo:
    1- Deve apresentar sempre queixa no livro de reclamações do Estabelecimento de Saúde, onde o caso se passou. NOTE BEM deve ficar com cópia legível da queixa.
    2- Este procedimento deveria ser suficiente para desencadear o processo de análise da reclamação. Infelizmente não é, pelo que se deve também:
    3- Apresentar queixa no Site da ERS. Ficar com cópia da queixa, guardar nº do processo que lhe for enviado e acompanhar regularmente o que for colocado no Site.
    4- Queixa por carta registada com aviso de recepção para a IGAS.
    5- Queixa para a Ordem ou Associação profissional respectiva no caso de a queixa ser sobre o comportamento de um profissional de saúde.
    6- Participar o caso no Site do GAT (www.gatportugal.org/questionário)
    7- Se pretender participar a situação ao Centro Anti-Discriminação VIH e Sida (707 240 240).

  • Unkown

    Estou surpreendido com este caso, mas não surpreendido em geral.
    Há uns 2 anos atrás, relacionei-me sexualmente com um desconhecido (pelo grindr), o preservativo rompeu e como sou muito paranóico e arrependi-me de imediato após o acontecido dirigi-me a um hospital da zona do Grande Porto, nomeadamente Póvoa de Varzim, e neste hospital foi-me negado qualquer tipo de tratamento, dizendo-me apenas que se essa pessoa era portadora de HIV eu provavelmente também seria. Indignado, vi-me obrigado a pedir ajuda a familiares (mãe e irmão), e no meio desta “vergonha” toda, lá fui eu ao Hospital do São João (passei a noite toda lá), contei o sucedido e foi-me dado pulseira amarela e a doutora prescreveu-me o tal tratamento, marcou-me consulta externa e retirou-me bastante sangue. Mas só consegui isto da médica porque foi-me informado pelo meu irmão do tal tratamento porque senão eles nem me mandavam fazer nada, visto que tive que PEDIR (Implorar) à médica.
    Fiz reclamação no livro de reclamações no hospital da póvoa de varzim, e nada foi feito.
    Espero que isto seja resolvido, porque há muitos jovens que não terão a mesma sorte.

  • Alexandre

    Boa noite, hoje aconteceu exatamente o mesmo com um conhecido meu. Após o rompimento 2x do preservativo durante a relação, e sem conhecer o historial clínico da rapariga, começámos a investigar e chegámos aqui e a outros sites !

    Como este tratamento é em questão de horas dirigimonos para a urgência hospitalar mais próxima de modo a questionar sobre o mesmo e se podia ser aplicado de imediato… A resposta foi que não há qualquer conhecimento sobre isto, não vem nos livros médicos e que (após a divulgação que tinha conhecido o PPE na internet) se nos fossemos guiar pela internet, então e cito palavras da ‘profissional’ : “rasgavam-se os livros médicos”..

    Não compreendo estas afirmações e ainda estamos incrédulos com tal resposta!

    Como profissional de saúde e após ser informada que existiam diversos casos (sim na internet!) e relatos, não deveria ser efetuada uma pesquisa pela mesma???? Amanhã ponderamos ir a Lisboa ou ao Porto (200km daqui) de propósito para passar pelo mesmo processo e ver alguma coisa acontecer, já que aqui foi isto!!

    Que vergonha! Como relatado acima, quantos casos semelhantes terão sido ignorados pela ignorância ou arrogância de profissionais????

  • Anónimo

    Eu fui hj fazer este tratamento no hospital de cascais e foi-me dada a prioridade laranja e fui tratado com o maior respeito por parte dos profissionais que se encontravam ao serviço.

  • Joao

    dirigi-me a semana passada ao centro de saude para pedir testes de DST’s, visto que a covid anda pelo ar, o enfermeiro de serviço disse que teria que aguardar que me marcassem consulta mais tarde… passou uma semana e ainda nao me contactaram, ao ler este artigo fico a pensar: atiraram-me para uma caixa e esqueceram-se de mim. é este o bom profissionalismo que temos por grande parte dos “profissionais de saude” 🙁