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Há dias recebi uma mensagem de um leitor, do Brasil. Escreveu-me um longo texto, dizendo-me que vai acompanhando o meu percurso, que lê os poemas e artigos publicados aqui e acolá. E agradeceu-me. Não só pelos escritos, mas sobretudo por um vídeo em que apareço a discursar no encontro «Portugal, quem és tu?» — organizado pelo Fernando Alvim, em Janeiro de 2015, no Pavilhão do Conhecimento, em Lisboa –, onde abordo a questão do bullying homofóbico de que fui alvo até aos 18 anos.

 

Confessou-me que vê e revê o vídeo, sonhando com o dia em que sinta a força para, primeiro, se aceitar, e deixar de sentir a dor, o medo e a solidão que tomaram a sua vida. Partilhou que nunca teve a coragem para afirmar quem é sexualmente. Tem 22 anos.

 

Imediatamente fui transportado para o dia em que verbalizei pela primeira vez a duas amigas «sou homossexual» e de como me senti livre, de como senti o peso que carregava comigo a esvair-se, de como me senti inteiro, verdadeiro e fiel a mim. Tinha acabado de fazer 18 anos. Era a primeira vez em que eu me dava a oportunidade de ser quem realmente era diante de outra pessoa, sem máscaras, sem segredos, apenas vivendo a minha natureza. Mais tarde, já na faculdade, contei aos meus pais, e o apoio que me deram foi estrutural na minha vida, ainda é. Tinha 20 anos quando lhes contei. Passados quase dez anos desde que tive coragem de verbalizar quem sou, e olhando para a partilha deste leitor — que gentilmente me autorizou a usar a sua experiência neste artigo –, tomo consciência do privilégio que tenho por viver em Portugal, inserido numa comunidade chamada União Europeia, que se tem empenhado, ano após ano, na salvaguarda dos direitos humanos. E digo privilegiado não com um sentido de condescendência por outras realidades, mas com a consciência de que, precisamente pelo privilégio que me foi dado, a minha responsabilidade é maior: o meu privilégio obriga-me e estar mais atento.

 

Tomo consciência do privilégio que tenho por viver em Portugal, inserido numa comunidade chamada União Europeia, que se tem empenhado, ano após ano, na salvaguarda dos direitos humanos. E digo privilegiado não com um sentido de condescendência por outras realidades, mas com a consciência de que, precisamente pelo privilégio que me foi dado, a minha responsabilidade é maior: o meu privilégio obriga-me e estar mais atento.

 

Em Portugal, a lei permite o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo desde 2010. Desde 2016, também é permitida a adopção. A Lei da Identidade de Género, que conquistou consideráveis avanços em 2017, trouxe benefícios inimagináveis à comunidade de transexuais, transgéneros e intersexo em Portugal. Por aqui, as coisas têm melhorado. Mas o privilégio que temos por viver numa sociedade cada vez mais consciente, com leis que salvaguardam os direitos das minorias mais desprotegidas, não pode ser encarado com sobranceria, mas como uma conquista que, como todas as outras, pode acabar. E é aí que todos nós somos chamados a intervir.

 

Em Janeiro, no dia 27, Dia Internacional em Memória pelas Vítimas do Holocausto, recordo sempre os entre 5 a 15 mil homossexuais que morreram nos campos de concentração nazis, juntamente com judeus, ciganos, eslavos, comunistas, deficientes físicos e mentais e todos os que representavam «impureza» para o regime. Recordo-os e não me deixo iludir pelos avanços da nossa sociedade. Cenários como os da II Guerra Mundial não estão assim tão distantes de nós: o campo de concentração para gays na Tchechénia, denunciado no ano passado por diversas ONGs; a crescente violência na Rússia, país que tem, inclusive, uma lei que abre caminho à censura de tudo o que tenha temática LGBTQI; ou, para abordar uma realidade um pouco mais próxima de nós, o aumento do fundamentalismo religioso cristão no Brasil — veja-se a forma violenta como a filósofa americana Judith Butler foi recebida em S. Paulo, em Outubro de 2017 –, realidade que contribui para que aquele país seja número um no mundo em assassinatos a pessoas LGBTQI (excluindo os países em que a homossexualidade é criminalizada), o que certamente justifica o medo sentido pelo leitor que me escreveu.

 

Acredito que, um dia, as questões LGBTQI serão encaradas tão naturalmente que textos como este serão redundantes e, até, caricatos. Para chegarmos até lá, importa verbalizar, porque a verbalização, a afirmação de quem somos, é um acto político, é a reivindicação de um espaço a que, por nascimento, temos direito. Tudo o que nasce na Terra é parte da Terra, ocupando um lugar na natureza. Tudo o que sobra são ideias, criações perenes que, um dia, o tempo substituirá por outras. Mas a natureza e o espaço que ocupamos nela, como animais que somos, permanecerá. É desta observação simples da nossa condição de habitantes da natureza que afirmo que todos temos o direito de aqui estar, por mais que algumas convenções humanas julguem que existem seres mais merecedores do que outros. Daí o papel da verbalização como reivindicação desse espaço que nos foi tomado, dando-nos visibilidade e trazendo-nos para o espaço público, acabando-se com o silenciamento a que fomos remetidos.

 

Vulnerabilizando-me um pouco, confesso que ainda tenho medo de afirmar, consequência, talvez, do exercício de domínio que exercem sobre nós. Ainda dou por mim, em algumas circunstâncias, a censurar subtilmente o meu discurso, evitando a palavra gay ou homossexual ou lésbica ou bissexual ou transgénero, prova de que ainda não me libertei totalmente da colonização mental que nos tem oprimido e controlado. Tenho de estar, por isso, ainda mais atento, para que eu próprio não seja mais um que perpetua o ciclo de controlo, tão bem preparado para que todos trabalhem a seu favor. Ninguém está livre dessa colonização, sendo fundamental estarmos conscientes a cada instante, a cada pensamento, a cada palavra, a cada acção.

 

Voltando ao leitor que me escreveu, a mensagem termina com um agradecimento, um agradecimento por, através daquele vídeo, eu lhe dar voz. Passo a citar: «Hoje, a tua voz é a minha voz». Na mensagem que lhe enviei como resposta, não referi esta ideia, mas importa referi-la aqui: não quero ser a voz de ninguém que não a de mim próprio, não tenho essa pretensão. Quero, sim, que todas as pessoas, independentemente da etnia, da orientação sexual, do género, do país de origem, da religião, das ideias ou de qualquer outra característica pessoal, tenham a liberdade e a coragem de se expressar, de ter voz, sem que haja o perigo de serem marginalizadas, agredidas ou mortas por um Estado ou um grupo de privilegiados. É por essa razão que me afirmo e é por essa razão que escrevo. Sonho com um mundo mais fraterno, o ideal da revolução francesa que falta cumprir. O mundo só precisa de mais amor.

 

Samuel F. Pimenta

Escritor

Artigo de opinião publicado também na revista Caliban