Não é nada fácil escrever sobre o massacre de Orlando. E não por não ser evidente que se trata de um ataque homofóbico, já que o alvo e o propósito o provam sem qualquer margem para dúvida. O problema é que a verdadeira catadupa de explicações contraditórias dos factos e respectivas explorações políticas e ideológicas o complicam num emaranhado extremamente difícil de destrinçar. Pode-se mesmo dizer que cada simplificação só obscurece e piora a compreensão de um crime trágico sobre o qual, por outro lado, não se pode fazer silêncio.
Esforçando-me por aclarar as águas turvas em que cada um pesca para seu lado, eu adiantaria, no mínimo – pois muito mais haveria para esclarecer – três ou quatro coisas:
Primeiro, o crime de Orlando prova que a homofobia, longe de ser coisa do passado, mantém no fundo toda a sua virulência, pronta a desencadear-se com a máxima brutalidade homicida, para tanto bastando que as condições para isso estejam reunidas. Só se quisermos enganar-nos a nós mesmos é que podemos dar-nos ao luxo de acreditar que a injúria, o estigma, a discriminação (Hotel Casa d’João Enes), a piada sarcástica (Sinel de Cordes), a boçalidade autocomplacente (João Malheiro), não contém já em si a possibilidade da agressão física até à morte. Isto leva-me a interrogar se não se puseram muitos de nós a dormir sobre os “adquiridos civilizacionais” como a aprovação de leis do casamento (em Portugal, como em alguns estados dos EUA e muitos outros países ocidentais) e que há quem dissesse que constituem o maior desafio à homofobia, quando o cúmulo da homofobia nunca consistiu em as pessoas não se poderem casar e sim serem – e continuarem sempre a ser – objecto de violência simbólica e de violência física. Um símbolo, sem dúvida. Mas bem mais frágil e precário do que julgava muita gente, agora em estado de choque. O reconhecimento formal de direitos nas sociedades ocidentais não reflecte o facto irreversível de as pessoas LGBTQ terem sido deixadas em paz de uma vez por todas para viverem as suas vidas em segurança. Não foram.
Segundo, um acontecimento que é passível de transformar pessoas como Assunção Cristas numa campeã da luta contra a homofobia ou Donald Trump em “compagnon de route” do homonacionalismo islamofóbico (que até existe mesmo) deveria fazer com tudo quanto é recém-chegado à luta (pelo protagonismo) LGBT+ anti-homofóbico (dentro e fora do activismo LGBT+) enxergasse em que companhias é que se quer para disparar tão indiscriminadamente como Omar Mateen críticas e lições tanto sobre amigos e aliados como sobre inimigos. Depois queixem-se quando Sinel de Cordes apelida as redes sociais de lodaçal.
Terceiro, se a esta mistura explosiva ainda se vem juntar a homofobia internalizada de Omar Mateen, como tudo indica, temos a tempestade perfeita. O pretexto para a desdramatização rejeitante que se dedica a virar o bico ao prego com a ideia que é o folclore típico dos homossexuais, voláteis, desiquilibrados e doentes a matarem-se uns aos outros. Acontece que a homofobia internalizada é o combustível de que se alimentam todos os fundamentalismos (religiosos) e totalitarismos (políticos) para transformar os seus alvos em carrascos de si próprios. As pessoas estão prontas a infligir o mal quando acreditam que é o seu bem que está em causa. Tem-se culpado o patriarcado estrutural da sociedade ocidental, a heteronormatividade constitutiva dela; pois (elas aí estão e sempre estiveram, mas…), enganem-me com as costas largas de um e de outra, que eu gosto. O fundamentalismo islâmico foi a voz que pôs na boca de Mateen as palavras da destruição e nas mãos os instrumentos dela, americano ou não, gay ou não, muçulmano ou não – somos o que de nós fazem e o que fazemos com o que de nós foi feito. Terá Mateen salvo a sua alma? a pureza dela? a masculinidade dela? a humanidade dela? Agora, nem ele próprio saberá. O que, e quem, pode amar alguém (gay ou qualquer outro) se não se ama a si próprio?
Quarto, não há culpa colectiva e a insistência em aliar o combate contra a homofobia e contra a islamofobia está certa. O que já não está certo é branquear o fundamentalismo islâmico, responsabilizando por todos os males a matriz cristã das sociedades ocidentais, quando essa nem sequer é a única matriz, nem a mais antiga, pois elas são três. A matriz originária é grega e a ela se deve a ideia de substituir a violência (bélica, terrorista) pela palavra, isto é, a democracia. A outra matriz é a iluminista moderna, e a ela se deve a separação entre as igrejas e o Estado que permitiu a emergência de sociedades laicas, as únicas a reconhecer igual valor e liberdade a todas as religiões, as únicas dotadas da capacidade de se pôr em causa radicalmente, julgando os seus próprios crimes e reconhecendo sujeitos de direitos, liberdades e garantias, entre os quais os direitos LGBT+. Tanto as torna moralmente superiores às sociedades (não às religiões) incapazes de o fazer, como as islâmicas, o que faz com que a diferença entre elas não seja mera questão de diversidade cultural. Interrogo-me se certas esquerdas e certo activismo LGBT não estão a praticar uma forma de hipocrisia activa que em vez de crítica política impiedosa faz moralismo demissionário beato. Caucionar o activismo queer só se ele fizer juramento anti-islamofóbico exige, pelo menos, reciprocidade: que as sociedades e as comunidades islâmicas que criticam a islamofobia ocidental se comprometam decididamente a recusar a sua própria homofobia. Os muçulmanos norte-americanos que manifestaram publicamente o seu repúdio pelo massacre de Orlando apontam no rumo certo.
No meio desta confusão de perigos em que tudo está a acontecer ao mesmo tempo, uma coisa permanece simples. Nós não somos amados. Nem bem-vindos. Nem aceites. Porque será que me sinto (outra vez) tão a sós com isso?
António Fernando Cascais, Professor na Universidade Nova de Lisboa e investigador queer
9 Comentários
Francisco
Texto esplêndido!
Graça Martins
Totalmente de acordo, Fernando Cascais. Um excelente texto ~como não podia deixar de ser. O último parágrafo é tão real quanto lancinante.
Beijinho
Graça Martins
Anónimo
Mesmo condenando a violência (e sobretudo com estes níveis), há que condenar também a actual “homosupremacia” e a supervalorização da agenda gay.
A homofobia é, por vezes (como acontece em Moscovo) uma reacção à despudorada e patética jactância dos gays – qual a necessidade das verdadeiras palhaçadas que são as “paradas” (que mais parecem corsos carnavalescos)?
Não são eles que se põem a ridículo que instigam sentimentos de repulsa entre a população?
Na minha terra sempre existiu um ou outro gay, sempre foram tolerados sem problemas, inclusive conhecidos como pessoas de bem. De há quatro ou cinco anos, só ouço dizer mal dos gays cá da terra, chegando ao ponto de existir quem os despreze.
De quem é a culpa?
Da população não, de certeza, pois sempre aceitou e nunca fez grande alarido contra os que se conheciam, que incluíam um médico, um funcionário do tribunal e dois técnicos superiores da autarquia.
Hoje, porém, fruto do seu comportamento, também eu os vejo com grande desconfiança e quero distância dessa gente!
José
Totalmente de acordo.
Sem dúvida, é verdade, isto só acontece porque, temos uma sociedade
mesquinha, invejosa, que se preocupa mais, com a vida dos outros, de que, com a sua.
Uma civilização, imbecilizada, pouco instruída, sem as mínimas noções de cidadania, nem de respeito pelo próximo. Uma sociedade, que não vê no outro uma pessoa, com todos os direitos e liberdades; uma sociedade que cadastra a liberdade do individuo de viver a sua vida.
Um povo que coscuvilha, que não pode ver, ninguém feliz, e que vive e fica feliz, com a desgraça alhea.
Então, que temos a ver, com o que, os outros fazem na sua vida privada.
Preocupa-mo nos com a vida dos outros, e a nossa muitas vezes está um caos.
Existem, problemas muito sérios no Mundo, que nos dizem respeito, a todos nós, e que nos afectam, de uma forma directa ou indirecta, e aí não fazemos nada, não nos indignamos.
Mas, se porventura, alguém, assume de uma forma corajosa, algo que é muito pessoal; então, o caso muda de figura, arregalamos os olhos e os ouvidos, e de imediato andamos a procura de qualquer mesquinhice, para assim, apontar o dedo e humilhar, denegrir, insultar, fazer bulling, pois não conseguimos aceitar, compreender, muito menos, conseguimos viver com a felicidade dos outros…
Foram, séculos de lavagem cerebral, para manter a mente estupidecida e de forma controlada…Uma educação religiosa desvirtualizada, conceitos e ideologias doentias, foram sendo silenciosamente implementadas nas cabeças do povo.
Uma sociedade, que se quer padronizada, a luz de uma ideologia ou de uma, ou mais crenças; que foi imposta por uma minoria, que por força do poder que tinha, e pensa que tem, subjuga o povo.
Ao longo dos anos, nas escolas, nem nos meios de comunicação social, nunca se apostou numa cultura cívica, centrada nos direitos individuais e universais de cada pessoa…e por ai a fora…
Nunca, se incentivou a liberdade de pensamento; pois quem reflecte, não dá nada, como verdade absoluta e inquestionável.
E desta forma, perpetua-se várias gerações, de gente amorfa sem espinha dorsal, doentia, intolerante, que só pensa, em se embriagar até cair, em sexo sem mexo, em andar a porrada por futilidades, como em jogos de futebol e há porta de discotecas, em bater na mulher e nos filhos, na tasca lançar piropos ás “gajas”, para assim mostrar a sua virilidade, de Homem como deve de ser, lançar insultos ao volante, reclamar sem razão…E por ai a fora…
E depois, disto tudo, temos uma sociedade preguiçosa, intolerante, preconceituosa, mesquinha, invejosa, que nada mais faz, do que destilar veneno e infelicidade…Pois, como têm uma vida vazia, infeliz, não pode, ver os outros de bem com a vida, nem sequer, admite que alguém possa ser feliz com as suas escolhas…
E como, bem refere no seu artigo, não somos bem-vindos, amados, muito menos aceites, na nossa forma mais genuína.
Claro que, no meio disto tudo, felizmente há excepções à regra.
Aqueles, que diariamente, lutam por um mundo, mais justo e Humanizado, como o Papa Francisco.
Um abraço.
Anónimo
Olha o victim blaming fresquinho.
Anónimo
De acordo com este alarve os jovens LGBT expulsos de casa não existem. E a mulher lésbica que foi espancada por um taxista também não existe. Há com cada idiota…
Anónimo
Concordo com a maior parte do seu comentário mas discordo quando diz que o papa luta por um mundo mais justo e humanizado. Ele apenas tenta dar uma boa imagem à Igreja Católica mas no entanto segue a ideologia reaccionária que a Igreja Católica impõe há séculos.
Anónimo
Comentário completamente desfasado da realidade.
Francisco
Com efeito, Einstein tinha razão. Duas coisas são infinitas: o Universo e a estupidez humana. Não obstante, em relação ao Universo, ele dizia que não tinha a certeza.