As Inseparáveis de Simone Beauvoir
"Dissemos trivialidades, como as pessoas crescidas, mas de súbito percebi, com espanto e alegria, que o vazio do meu coração, o sabor insípido dos meus dias, tinham um único motivo: a ausência de Andrée. Viver sem ela não era viver. A irmã de Villeneuve sentou-se na sua cátedra e eu repeti para mim mesma: «Sem Andrée, deixo de viver.» A minha alegria transformou-se em angústia: mas então, questionei-me, o que seria de mim se ela morresse?"
As Inseparáveis, da escritora e feminista francesa Simone Beauvoir, é considerado o romance mais inédito e íntimo de Beauvoir. Considerado demasiado íntimo para ser publicado em vida, o livro é publicado postumamente, 34 anos após a morte de Beauvoir, por iniciativa de Sylvie Le Bon de Beauvoir, filha adoptiva e depositária da herança literária de Simone que resgata do armário o primeiro amor adolescente de Simone Beauvoir e de Élisabeth Lacoin, ou Zaza.
Publicado em França em 2020, 75 anos após a sua redacção, esta é uma obra autobiográfica com um Q de ficção. Narrado na primeira pessoa, Beauvoir decide mudar o nome das personagens, Beauvoir é Sylvie e Zaza é Andrée, contando-nos a história de uma amizade que embora com um desfecho trágico, com a morte de Zaza por encefalite com apenas 21 anos, mostrara marcar a vida pessoal e moldar a obra literária de Beauvoir. O cerne da história retrata a amizade feminina e transformadora de Sylvie e Andrée que, na descoberta do seu caminho no mundo, tornam-se inseparáveis até ao liceu e à trágica morte de Andrée.
Lutando contra as ideias convencionais do que uma mulher deve ser na Paris do início do século XX: casta, devota, obediente e obrigada, desde tenra idade, a pôr de lado os seus próprios interesses e paixões, percebemos o início do pensamento feminista de Beauvoir por justaposição ao mais conservador e católico de Zaza, ambas privilegiadas pelo benefício de uma educação burguesa e endinheirada mas que, com perceções de vida diferentes, se distanciam no caminho político e emancipatório que decidem tomar: a luta contra o destino lamacento da mulher na Europa do pós-guerra no séc. XX.
Sylvie e Andrée, conhecem-se aos nove anos, no colégio Désir, numa Paris dividida pela Primeira Guerra Mundial. Andrée é divertida, impertinente, audaciosa; Sylvie, mais tradicional e tímida, sentindo-se irremediavelmente atraída pela vivacidade e inteligência da amiga. No entanto, por detrás da postura audaz de Andrée esconde-se uma família católica fervorosa que, com suas tradições rígidas e ambiente opressor, tentam eclipsar qualquer expressão de individualidade da jovem.
Nesta obra encontramos as experiências que fundamentaram a revolta e a obra da icónica filósofa francesa: a sua emancipação e o antagonismo entre intelectuais e conservadores da época. Entre cartas trocadas, fotografias antigas e um romance íntimo e autobiográfico encontramos entre Sylvie e Andrée a história de uma relação de amizade e formativa intensa de Beauvoir com a sua amiga Zaza, mostrando marcar a mulher em que Beauvoir se viria a tornar e da sua intensa luta e teorização sobre a emancipação feminina contra as opressões da família e da sociedade.
Ainda, no posfácio da obra encontramos o depoimento de Sylvie Le Bon-de Beauvoir que, optando por publicar inicialmente a correspondência trocada por sua mãe com autores como Sartre (1905- 1980), Nelson Algren (1909-1981) e Jacques-Laurent Bost (1916-1990), agora dedica-se a organizar uma obra disruptiva sobre Beauvoir e as memórias de uma paixão que mostrara influenciar livros como Memórias de uma Menina Bem-Comportada (1958) e Os Mandarins (1954).
ISBN: 9789897227172
Editor: Quetzal Editores
Páginas: 160
Daniel Santos Morais é mestre em Sociologia pela Universidade de Coimbra. Feminista, LGBTQIA+, activista pelos Direitos Humanos. Partilha a sua vida entre Coimbra e Viseu. É administrador do site Leituras Queer.