Há uma semana foi coroada a rainha do concurso Miss Drag Lisboa. Fomos falar com ela e perceber quem é e o que pensa Babaya Samambaia.
dezanove: Por que razão escolheste esse nome artístico?
Babaya Samambaia: Uma vez me disseram: “Quando a Babaya entrar na sua vida, você será outra pessoa.” E essa frase ficou na minha cabeça… a pessoa se referia a uma professora de canto, mas isso ficou na minha memória e me veio numa sessão de psicanálise tempos depois. Eu não gosto de nomes de divas norte americanas e Babaya veio a calhar bem. Já samambaia é aquela planta que aqui em Portugal vocês chamam de feto. É uma planta que minha mãe adorava… então é como uma homenagem à memória dela também.
És de Belo Horizonte, como foi crescer lá?
Foi bom. Belo Horizonte é uma cidade parecida a Lisboa em relação ao tamanho. Clima mais ameno, cercada por montanhas e muitas ladeiras… acho que as pernas da Babaya agradecem (risos). Vivi lá até decidir vir para Portugal. Belo Horizonte produz muita arte e possui artistas muito inquietos. Acho que crescer ao lado desses artistas me formou uma pessoa “desassossegada” (risos).
Fala-nos da tua decisão sobre a vinda para Portugal. O que deixaste lá no Brasil e esperavas encontrar cá? Já encontraste?
Estou cá desde Fevereiro… ou seja, muito pouco tempo. Decidi vir para Portugal no dia em que o actual presidente foi eleito. Até hoje me envergonho da escolha do meu país. Não consigo perceber como puderam ser tão irresponsáveis nessa escolha. Ver pessoas da minha família votando naquele cara me deixou muito chateada. Comecei a sentir medo do ódio conservador que, legitimado pelo próprio presidente, me poderia atingir em algum momento. Não consigo acreditar que o “grito de guerra” da Ministra dos direitos humanos tenha sido “É uma nova era: menino veste azul e menina veste rosa!” Parece-me tão absurdo… tão tragicómico… e que a verdade seja dita: Portugal também é um país muito conservador, mas ainda não fomos atingidos por um governo de extrema direita. Vejo aqui uma possibilidade de dar continuidade ao meu trabalho como artista e como drag queen. Desejo continuar minhas pesquisas de género e sexualidade. Além disso, por trabalhar muito com a palavra nas minhas criações, a proximidade linguística foi essencial na minha escolha de vir para Portugal.
Decidi vir para Portugal no dia em que o actual presidente foi eleito. Até hoje me envergonho da escolha do meu país.
Trumps, Pérola Negra, mas há mais… Onde te podemos encontrar a actuar aqui em Portugal?
Estarei mais próxima do Trumps nos próximos dias. Vou participar de algumas noites por lá. Fora isso, estarei com um trabalho pessoal que também faço em drag mas que caminha por uma linha contemporânea. É um solo que apresento como Babaya e que fala sobre a morte. Eu não fui ao velório da minha mãe, nem ao seu enterro. Não vi o corpo dela depois de morto. Baseado nisso, criei esse trabalho onde faço um velório muito louco com a ajuda do público. Uma das espectadoras faz o papel da minha mãe, por exemplo. Essa performance será apresentada na Lapo, um espaço incrível, novinho, na Baixa-Chiado.
No momento em que entraste no palco do Miss Drag Lisboa, a imitar uma avestruz, muitos acreditaram, naquele momento,que serias a vencedora. Que reacções tiveste ? Onde te foste inspirar? Podemos considerar-te um animal de palco?
Sim, por acaso ouvi muito essa frase sobre a minha primeira entrada. Me inspirei num vídeo que vi no Instagram. Essas imagens que ficam grudadas em algum lugar das nossas memórias e que, numa hora ou outra, descolam e calham bem. Gosto da ironia, do absurdo, do deslocado… não ter medo do ridículo. Entrar como uma avestruz pode ser bem ridículo, não é? (risos) Bom, e sobre ser um animal de palco, eu gosto de me animalizar, me sexualizar, me gritar, me partir metaforicamente para ver as pessoas do público também se animalizando, sexualizando, gritando. como diz a Liniker, uma artista trans, “deixa eu bagunçar você ” Gosto de ver coisas que me bagunçam, me viram do avesso, e, quando performo, quero fazer o mesmo. Quero bagunçar os corações, as mentes e (por que não?) as virilhas também! (risos)
Quero bagunçar os corações, as mentes e (por que não?) as virilhas também!
Como foi participar no Miss Drag? O que te levou a inscrever? Esperavas este resultado?
No dia do Miss Drag a Blue Velvet me perguntou: Estás confiante? Eu respondi que não, que estava guerreira mesmo! Mulher de guerras! (risos) E foi assim. É lógico que eu esperava a coroa, estava trabalhando por isso há um bom tempo, mas sabia que não seria fácil. Discursos são sempre muito tensos, muito corridos, não dá muito tempo de gozar e aproveitar… e a certeza que aquilo poderia ser uma plataforma para divulgar meu trabalho foi o que me levou a me inscrever. Como cheguei há pouco tempo, precisava de uma forma de mostrar minha arte a mais pessoas, falar das questões que me rodeiam e conseguir algum reconhecimento. É como se o concurso pudesse legitimar minha drag aqui em Portugal.
Uma palavra para as restantes concorrentes?
Mulher de guerras, mulher de batalhas! Guerreiras, tudo isso são só fogos de artifício. Um amigo meu me disse que não podemos construir uma profissão. Temos que construir uma carreira. A profissão pode ser decidida num dia. A carreira é composta de escolhas diárias. Escolham todos os dias ser essas mulheres lindas que vocês são e construam o vosso império. Também perdi concursos e isso só colocou mais fogo na minha pussy.
E para os teus fãs?
Como essa terra tem gente queridaaa! Quanto carinho tenho recebido pelo Instagram… não estou conseguindo responder e seguir todas as pessoas que estão aparecendo por lá. É realmente muita gente! Há um detalhe muito importante: 7 de Setembro (dia do Miss Drag Lisboa) foi também o Dia da Independência do Brasil. Internamente isso foi muito simbólico para mim. Ser reconhecida em Portugal nessa data foi como se eu sentisse os nossos estereótipos culturais irem ao chão. Estávamos celebrando as nossas lutas, o nosso feminino, a nossa liberdade, independentemente de onde cada um nasceu. Estamos passando por momentos muito retrógrados e machistas. Migas, precisamos estar perto! Precisamos parar de enaltecer o macho, o pau do macho, e ocupar com novos pensamentos os lugares de poder. Precisamos de mulheres, de pessoas trans, na política e nas chefias. Outra coisa: chega de pensar que o “bom gay” é aquele que não demonstra feminilidade. Parem de querer masculinizar as nossas bichas! Parem de masculinizar os homens heteros! Fico passada com isso… (risos). Vamos celebrar a liberdade e o amor. Vamos nos amar como somos. Venham me amaarr! (risos).
Parem de querer masculinizar as nossas bichas! Parem de masculinizar os homens heteros!
Que artistas te inspiram?
Me inspiro muito na Linn da Quebrada, no discurso dela. Ela me inspira a pensar em novas formas de amar… de me pensar numa relação. Às me relaciono com homens heteros sendo Babaya. Essa relação entre homens e mulheres trans carrega muitos estigmas, é uma relação meio adoecida, viciada. Quase uma relação de consumo: “come e some”. Tento fazer diferente, converso muito com eles. Você, guerreiro hetero que se interessa por mulheres trans, você pode amar, beijar, namorar, casar, formar uma família com uma mulher trans, ok? É possível. Parece que estou a brincar, mas muitos nem imaginam essa possibilidade. Não tenham vergonha da vossa forma de amar. Não tenham medo de se entregar… Para terminar, como não podia deixar de ser, me inspiro muito na Beyoncé também. Acho que ela consegue unir de uma forma muito feliz o pop com o pensamento político dela. Ela só sai de casa se for para arrasar… salve salve!
Fazes da arte drag uma profissão a tempo inteiro ou tens de dividir o teu tempo com outros trabalhos?
Eu divido o meu tempo com vários trabalhos. Não consigo ficar focado só num trabalho. Me faz bem ser atravessado por várias informações. Assim não me sinto bitolado (não sei se há essa palavra em Portugal (risos). Actualmente estou num empresa de eventos como bailarino.
A vida de artista drag não é fácil e obedece a grandes esforços físicos, monetários, ensaios, de robustez mental, luta contra o preconceito… Podes partilhar algumas histórias com os nossos leitores?
Eu cheguei a desistir internamente do Miss Drag. Estava em Odemira trabalhando num eco-camping longe de tudo. Comecei a dar em maluco com isso. Voltei a pensar na competição um mês antes da data do Miss Drag Lisboa. Tentava ensaiar todos os dias pelo menos 1 hora… mas últimas semanas 2 horas por dia. Assisti muitos vídeos da Vogue para me alimentar dessa linguagem e pedi ajuda aos meus colegas de trabalho também. Sabia que não poderia contar com bailarinos de Lisboa por não conseguir estar aqui para ensaiar com eles . Eu tinha que dar conta do recado sozinha.
Sobre os outfits, só foi possível porque combinei com a ajuda de um amigo talentosíssimo, o Renato Siqueira, que deu corpo às minhas ideias de uma forma incrível. Gastei muito, muito dinheiro… um pouco mais de 1000 euros. O que só foi possível por eu estar nesse trabalho de Verão juntando dinheiro.
Nunca passei por casos graves de homofobia. Já fui agredido verbalmente muitas vezes e já tentaram me acertar com uma garrafa quando ia atravessar a rua na época das eleições. Eu estava como Babaya nessa situação. Entretanto erraram a mira. “Não mexe comigo porque eu não ando só!” (risos) é engraçado porque quando estou como Babaya tenho mais medo de andar sozinha… internamente sou a mesma pessoa porém sou lida de outra forma por quem me vê. Com isso, consegui perceber um pouquinho do que as mulheres passam diariamente.
Entrevista de Paulo Monteiro
Fotos: Filipe Ferreira