BDSM e Feminismo: Resistência ou Reprodução das Estruturas de Poder?
O BDSM (Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo) refere-se a um conjunto de práticas em que os participantes assumem papéis opostos, dominador(a) ou submisso(a), de acordo com as suas preferências, e pode envolver dor, jogos eróticos e acessórios como coleiras, algemas, cordas e dildos. As interacções baseiam-se no princípio do consentimento mútuo, claro e contínuo.
Apesar de haver referências anteriores, o BDSM, tal como é conhecido hoje, surgiu após a Segunda Guerra Mundial, nas décadas de 1940 e 1950, nos EUA, entre grupos de homossexuais masculinos. Com o afastamento da sexualidade da sua função reprodutiva e o aumento da liberdade sexual, o interesse pelas sexualidades não normativas cresceu, levando a que o BDSM se tornasse uma possibilidade para todos os géneros e orientações sexuais.
Estas práticas têm, no entanto, gerado algum debate, principalmente dentro dos movimentos feministas e no que diz respeito ao papel das mulheres nas dinâmicas de subordinação/dominação.
O feminismo radical, que entende o patriarcado como um sistema estrutural presente em todas as esferas da sociedade, incluindo a sexualidade, critica o BDSM por considerar que este reforça as desigualdades de género. Andrea Dworkin, uma das vozes mais influentes desta corrente, considera que o BDSM perpetua e normaliza a dominação masculina, estabelecendo paralelos com a pornografia e a prostituição. Também Audre Lorde, embora mais associada ao feminismo interseccional, mas próxima do feminismo radical, via o sadomasoquismo como uma prática que institucionaliza as relações de poder vigentes, promovendo a aceitação da dominação como algo inevitável e até desejável. Para Lorde, as dinâmicas de dominação e submissão no BDSM reflectem a estrutura heterossexual tradicional, moldando os desejos e legitimando a violência contra as mulheres.
Já o feminismo pró-sexo adopta uma perspectiva distinta, encarando o BDSM como uma expressão da liberdade sexual feminina. Para esta corrente, a possibilidade de explorar a sexualidade, seja num papel dominante ou submisso, é um direito das mulheres, desde que exista consentimento. Assim, em vez de ser visto como uma forma de opressão, o BDSM é entendido como uma oportunidade para uma vivência plena e autónoma da sexualidade.
Dentro desta abordagem, a ensaísta Laura Kipnis interpreta o BDSM como um ato de resistência ao conservadorismo sexual. Na mesma linha, a antropóloga e teórica feminista Gayle Rubin critica a classificação de certas expressões da sexualidade como aceitáveis e outras como desviantes, pois reforça normas opressivas e restringe a liberdade sexual.
Quanto ao feminismo queer, este aproxima-se da visão de que o BDSM pode ser visto como uma subversão da sexualidade normativa; no entanto, alguns teóricos também reconhecem que, em determinados contextos, pode reproduzir normas hegemónicas.
Na minha opinião, uma crítica construtiva ao BDSM deverá integrar os elementos mais válidos das diferentes teorias, em vez de adoptar perspectivas polarizadas, uma vez que as várias correntes feministas apresentam tanto limitações como aspectos válidos.
O feminismo radical, por exemplo, peca ao condenar o BDSM de forma absoluta, ignorando que este possa representar uma forma de libertação sexual para as mulheres — um meio de explorar a sua sexualidade, uma alternativa a práticas normativas frequentemente insatisfatórias e limitadas ao coito. Além disso, desvaloriza o facto de muitos praticantes de BDSM terem uma consciência crítica das dinâmicas de poder. Esta corrente tem, no entanto, mérito ao alertar para o significado simbólico dessa escolha. Efectivamente, estas dinâmicas podem reproduzir as desigualdades de poder na sociedade e, eventualmente, perpetuar a submissão feminina perante o homem.
Já o feminismo pró-sexo, a meu ver, acerta ao defender o direito das mulheres de viverem a sua sexualidade sem imposições ou julgamentos, permitindo a sua libertação de muitos constrangimentos relacionados com os moralismos sociais. O BDSM pode ainda também dar-lhes a capacidade de negociar e controlar o poder, algo que, fora deste contexto, lhes é muitas vezes negado.
No entanto, esta corrente feminista falha ao desconsiderar a carga simbólica destas dinâmicas. É importante dizer que a exploração da sexualidade acontece, mas tem como base a desigualdade de poder. Se o pessoal é político, como podemos querer um mundo mais igualitário quando estamos a erotizar essa mesma desigualdade? Para além disso, mesmo quando o papel de submissão é uma escolha da mulher, é importante questionar até que ponto essa decisão é verdadeiramente autónoma ou se é influenciada por uma sociedade que ainda empurra as mulheres para papéis de subordinação.
Se o pessoal é político, como podemos querer um mundo mais igualitário quando estamos a erotizar essa mesma desigualdade? Para além disso, mesmo quando o papel de submissão é uma escolha da mulher, é importante questionar até que ponto essa decisão é verdadeiramente autónoma ou se é influenciada por uma sociedade que ainda empurra as mulheres para papéis de subordinação.
Também nas comunidades LGBT faz sentido questionar se o BDSM desafia verdadeiramente as estruturas estabelecidas ou, pelo contrário, as reforça. Estaremos a desconstruir a sexualidade hegemónica ao explorar práticas não normativas? Ou, pelo contrário, a reproduzir dinâmicas heterossexuais tradicionais, como a idealização de relações dominador/submisso em contextos queer? Num mundo marcado pela desigualdade, não será mais subversivo pautar a sexualidade por dinâmicas igualitárias?
Estaremos a desconstruir a sexualidade hegemónica ao explorar práticas não normativas? Ou, pelo contrário, a reproduzir dinâmicas heterossexuais tradicionais, como a idealização de relações dominador/submisso em contextos queer?
Por fim, mais do que julgar dinâmicas individuais, importa reflectir sobre os significados que lhes atribuímos e os sistemas que as sustentam. O BDSM pode, de facto, ser uma experiência válida de liberdade e descoberta para muitos, mas isso não significa que esteja isento de reproduzir dinâmicas sociais mais amplas. O desafio não está em rejeitar estas práticas, mas em garantir que as escolhas sejam verdadeiramente autónomas e informadas, num contexto de consciência crítica.
Daniela Alves Ferreira