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Carta aberta a Manuel Luís Goucha

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Caro Manuel Luís,

Sei com toda a certeza, enquanto escrevo estas palavras, que nunca lhes passará os olhos, mas não posso deixar de as escrever, enquanto cidadão livre pós 25 de Abril de 1974, que tanto clama nas suas palavras.

Gostaria de lhe dizer, em primeiro lugar, que já foi para mim um ícone, um modelo, uma pessoa que eu admirava e que, de alguma maneira, influenciou o meu processo enquanto pessoa. Olhava para si sempre com respeito e admiração, desejando um dia ter a coragem que o Manuel tinha, de vestir fatos de diversas cores e feitios, com padrões e sem padrões, com óculos de cor e por aí fora. Admirava a forma como conseguiu atingir um estatuto e poder assumir, sem problemas para si, a sua relação com o seu marido, o Rui.

Contudo, de há uns tempos para cá, toda a admiração e empatia que tinha por si, foram desaparecendo. Acho que nós crescemos e começamos a tomar consciência da realidade e a identificar-nos mais com A e B do que com C e D. Mas o meu descrédito em si tem vindo a aumentar de dia para dia.

Contudo, de há uns tempos para cá, toda a admiração e empatia que tinha por si, foram desaparecendo. [...] Mas o meu descrédito em si tem vindo a aumentar de dia para dia.

Não sabe, nem lhe interessa, mas eu enchia o peito quando me diziam: tu és o Goucha de Vouzela. Sim porque o Manuel Luís era uma referência importante para mim e ser comparado a si era, no mínimo, uma coisa óptima. Talvez conheça a sensação, ou talvez não. Quero acreditar que o Senhor Televisão também passou por maus bocados.

Como o Manuel Luís eu lutei por ser reconhecido pela pessoa que sou, ocultando a minha orientação sexual para não sofrer discriminação. Talvez se lembre do seu tempo de infância em que era gozado por outros miúdos. Mas estou em crer que a memória lhe está a começar a falhar e que se está a esquecer de olhar para trás.

Hoje, mais uma vez, vi aquilo que nunca achei ver da sua parte: a humilhação descarada e sem princípios. Entenda-o como quiser, eu entendo-o desta maneira. Eu amo de morte o FF como os Fado Bicha. Se por um lado tenho uma voz fantástica e que me emociona e toca o coração, por outro lado tenho a Lila e o João que são verdadeiros activistas, pessoas totalmente acessíveis e com um coração enorme.

Manuel Luís, alguém tão culto não é capaz de reconhecer que o folclore é a alma do nosso povo também? E se os Fado Bicha fossem folclóricos, como afirmou, qual seria o problema? Pelo menos representariam melhor o nosso país do que outros que já para lá foram. Mas isso a si não o incomodou.

Manuel Luís, alguém tão culto não é capaz de reconhecer que o folclore é a alma do nosso povo também? E se os Fado Bicha fossem folclóricos, como afirmou, qual seria o problema?

Se não quer ser membro de nenhuma comunidade, é livre de o ser. Mas não é livre de a maltratar publicamente como constantemente está a fazer. Primeiro com os pretensos “becos” a que nos remeteram, depois com a ofensa a um grupo que representa a voz e a imagem de tantos de nós. De certo hão de o ter chamado também de folclórico quando usou certos padrões, certos lenços, certos folhos. Mas isso a si não o incomoda, porque o Manuel Luís tem tudo. A nós falta-nos muita coisa: respeito, igualdade, liberdade.

Como figura pública que é deveria saber que certos comentários deveria guardar para a sua grupeta que, sendo eles maioritariamente homossexuais, se retiram de “becos” por conveniência. De certo que Botto, Al Berto, Luís Miguel Nava estão a dar voltas na tumba por verem que todos os seus sacrifícios como figuras públicas estão a ser deitadas por terra. Infelizmente, nota-se cada vez mais isso na televisão portuguesa: personalidades como o senhor a virarem as costas à comunidade que lutou por direitos que o senhor e eles agoram usufruem. Ainda bem que houve uma comunidade a lutar pelo casamento entre pessoas do mesmo género, para o senhor poder estar agora casado. Mas aí eles não eram do beco, eles não eram folclóricos.

Respeito a sua posição de não se querer identificar com nada destes folclorismos, mas isso não lhe dá o direito de dizer certas coisas.

Por acaso já pensou em convidar essas mesmas pessoas para o seu programa? Dar-lhes voz, mostrá-las ao mundo? Não, isso não interessa. Fascistas de merda e nazis é que sentam o cu naquela cadeira. Mas, se bem me lembro, soube enfrentar a Maria Lisboa por ela não ter aceite a homossexualidade do filho, levando-a ali, diante do país, à vergonha. Não, isso não interessa. Interessa criar audiências para um canal que está cada vez pior. Não se encaixe em guetos, reflicta sobre a posição priveligiada que o senhor tem. Na posição onde poderia evitar que miúdos fossem expulsos de casa, que miúdos sofressem agressões por serem o que elas são. Isso é que deveria pensar pela sua mente.

Despeço-me, senhor Manuel Luís Goucha, de uma forma muito triste, por ter deitado por terra toda a sua imagem. Lembre-se, ainda, que foi muita gente deste “gueto” que o suportou e lhe deu visibilidade, apoiando-o, defendendo-o, partilhando-o. Gente pequenina esta que se esquece rápido do que foram. Gente pequenina esta que vira as costas a quem sofre, a quem vive a discriminação diariamente. Talvez fosse bom perceber o que é andar na rua e ouvir um “lá vai o paneleiro”, “olha o maricas”, “sai daqui bichona”. Talvez soubesse o que muitos de nós vivem e talvez se lembrasse pelo que já passou.

Graciosamente, uma bicha homem, que usa saias, saltos altos, folclórica sem problemas em o ser!

 

Ismael Sousa

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