Cinquenta anos de orgulho
“Nunca compreendes realmente alguém
até que considerares as coisas desde o seu ponto de vista...”
― Harper Lee, Não matem a cotovia
Junho de 1969, Nova Iorque.
No bairro de Greenwich Village, o dia 28 de Junho e os dias que se seguiram mudaram o percurso das pessoas LGBT[IQ+] para sempre. Bom, para as décadas que se se seguiram, porque esta coisa dos direitos e da visibilidade levam uma eternidade a conquistar, mas vão à vida em meia hora.
Na altura, as rusgas policiais e a intolerância da comunidade local contra as pessoas que frequentavam o bar Stonewall Inn eram frequentes. A homofobia era legal, institucional, social, e internalizada A Medicina fazia-nos terapia reparativa. A homofobia era criativa. A homofobia matava e fazia parte da agenda política de um país marcado por fortíssimas desigualdades sociais, como é o caso dos EUA.
A homo/transfobia ainda mata, faço um parêntesis: só no Brasil, em Maio deste ano, pelo menos 126 pessoas foram assassinadas pela sua orientação sexual, identidade de género e/ou expressão de género. Acrescente-se ainda 15 suicídios. Números aquém da realidade, como sabemos. E por isso peço que retenham esta premissa: pelo menos 1 morte a cada 23 horas (alerta dado por uma ONG brasileira). Parêntesis fechado.
Regressemos aos EUA, e onde uma rusga não teve o resultado esperado, porque algumas pessoas resistiram à detenção policial. Horas depois centenas de apoiantes à causa juntaram-se em protesto. Houve desacatos e resistência – muita resistência. O ponto de viragem começou aí, há cinquenta anos. E, um ano mais tarde, em São Francisco, celebrava-se a primeira marcha do orgulho. Esta é a história do início do movimento LGBT. Haverá certamente outras versões, porque os protestos nem sempre são mainstreams, e todos contam.
É consensual, nos dias que correm, que a vida das pessoas LGBT[IQ+] nunca esteve tão bem. O que é em certa parte verdade, em certa parte do mundo. Aliás, existe a confiança imberbe de que os “nossos” direitos não sofrem qualquer ameaça. Os das pessoas não documentadas ou das minorias religiosas, como, por exemplo, do Islão, sim.
Este raciocínio, “bem-intencionado”, esquece-se de que quando direitos, liberdades e garantias são postos em causa todos os outros podem vir atrás. Numa democracia, ninguém deve estar acima ou abaixo da lei. Todas as pessoas devem estar salvaguardadas. Mas na prática os direitos humanos e a democracia nem sempre convivem harmoniosamente.
Para quem gosta de mapas, vale a pena ver o registo de 2019 da Ilga World: a homossexualidade ainda tem pena de morte em 11 países; pena entre dez anos e prisão perpétua em 26 países; e até oito anos de pena em 31 países. Na sua maioria, resquícios dos velhos enquadramentos legais introduzidos com a colonização, e/ou derivados de fanatismos religiosos. No total, estamos a falar de um terço da soma de todas as nações.
Quais as implicações? Para começar, quase tudo depende de onde se nasce, cresce e vive. Para as pessoas com mais “sorte”, nas quais estou incluída, a sobrevivência não se coloca. Estou longe de saber o que isso é, graças ao acaso.
Mas viajar implica saber em antemão qual o enquadramento legal das nossas famílias, das nossas identidades, porque em muitos partes não somos reconhecidas como tal (é mesmo assim). Mais, as famílias com crianças têm vulnerabilidades acrescidas. Nos documentos, a conjugalidade das mães/pais vem explícita. Não há como esconder que o Luís tem duas mães e a Mafalda dois pais. Ou seja, as crianças estão sempre fora do armário em relação às progenitoras/progenitores e, como consequência, também nós. A exposição é total. Acreditem, pode ser bastante assustador.
E por isso é tão importante criminalizar a homofobia, como um crime de ódio, para que aos poucos o mesmo mapa vá ganhado outros contornos ― direitos, liberdades e garantias, em todo o lado.
Há quem diga que somos o movimento que mais mudanças teve num curto espaço de tempo, na sociedade e na lei. Embora não se saiba muito bem porquê. Novamente, tudo depende do acaso, das circunstâncias, e do país onde nos encontramos. E ainda assim, não é fácil. Explicar a uma criança o que é a homofobia (ou qualquer outra forma de discriminação) é perturbador. Mas se queremos que se defendam, temos de o fazer, porque não vamos conseguir estar sempre presentes – o preconceito, sim.
Passados cinquenta anos de conquistas, estamos sempre a entrar e sair do armário. É constante, cansativo. O escrutínio cliva-nos. Os comentários são diários e chegam, também, de ambientes que damos como garantidos. Há sempre quem insinue que a igualdade plena é para a “norma”. E é esta a nossa realidade: as pessoas com “sorte” apenas não fazem parte da “norma”. Vá lá, podia ser bem pior. Happy Pride.
Sara Martinho, activista